Eu olhava para a sacola imensa que ele carregava, e morria de inveja. Ezequiel Neves, meu ídolo, estava sempre com uma impressionante quantidade de discos.
Nunca fomos amigos, nunca conversamos mais do que uma troca rápida de duas ou três frases.
Um dia entramos juntos no prédio do Estadão, passamos ao mesmo tempo pela portaria. É um caminho grande entre a portaria da Celestino Bourroul e o hall dos elevadores, e me sentia intimidado andando ao lado do meu ídolo. Não me lembro da frase que tentei falar; deve ter sido alguma coisa do tipo “Pô, Ezequiel, deve ser legal poder ouvir tudo isso”.
Zeca Zagger virou-se para mim e disse:
– Meu santo, é um saco!
Ele chamava todo mundo de “meu santo”.
Isso deve ter acontecido por volta de 1976, 1977, porque já era o prédio novo do Estadão, no Bairro do Limão, para onde fomos em 1976, o ano em que meu irmão Arnaldo morreu, o ano em que Regina Lemos apareceu e eu saí da casa da minha mulher e da minha filha com uma sacolinha pequena de roupa.
Era fanático pelos textos do Ezequiel desde 1968, o ano em que cheguei a São Paulo. Babava lendo os textos dele no Jornal da Tarde – ele era crítico de música internacional, de rock & pop & o escambau. Eu lia os textos do Ezequiel como um tarado lê Sade, como um crente lê a Bíblia.
Lembro, vou me lembrar sempre de uma frase que ele escreveu sobre o disco Self Portrait, de 1970, em que Dylan gravou “The Boxer”, de Paul Simon; Ezequiel Neves cometeu uma frase assim, tipo assim: é como se Leon Tolstói estivesse homenageando Soljenítsin. Aquilo me deixou profundamente impressionado.
Em 1968 eu era um estrangeiro chegando a São Paulo, pobre, sem norte, sem rumo, sem nada. Em 1970, por uma dessas artes do destino – ou, mais exatamente, graças a Gilberto Mansur, meu amigo, marido de Vivina de Assis Viana, minha professora, guru, amiga –, virei foca no Jornal da Tarde, passei a trabalhar no mesmo espaço em que trabalhavam Ezequiel e tantos outros jornalistas que eu conhecia de nome e admirava. E eu o invejava sempre que o via carregando imensas sacolas de disco. O salário de foca era bem pequeno, menor do que eu ganhava antes numa empresa de comércio de ferramentas na Florêncio de Abreu, e cada disco que comprava era uma dádiva.
Em 1976, ou 1977, o salário já era bem, bem melhor, e me dava ao luxo de comprar belos LPs importados nas grandes lojas do Centro, o Museu do Disco, a Breno Rossi, a Bruno Blois, mas ainda invejava meu ídolo Ezequiel Neves quando o via carregando as sacolas de disco.
Ele foi cortante:
– Meu santo, é um saco!
E explicou: no começo é bom, mas depois que vira obrigação é uma tortura ter que ouvir aquilo tudo, muita merda no meio das coisas boas.
Em 1980, Sandro Vaia editava a Variedades do Jornal da Tarde, abriu espaço para mim e comecei a escrever sobre discos. Passei a receber discos das gravadoras – quase como Zeca Jagger. Quase – para ele vinham muito mais discos.
Me lembro bem de uma reunião de pauta, no final da tarde, acho que estava voltando de férias, e a Milay, a secretária, me entregou um monte de sacolas das gravadoras que tinham chegado nas quatro semanas, e o Ruyzito, o filho do patrão, disse: – “Pô, você deve ter discos pra caramba”. E eu respondi, bem agressivo: – “Tenho, sim, e comprei todos eles, até agora.”
Escrevi resenhas e recebi discos das gravadoras durante quatro anos, até 1984, quando Fernando Mitre levou uma dúzia de nós para a aventura da revista Afinal. Lá, como não tinha tempo para escrever sobre música, os discos das gravadoras foram raleando.
Zeca Jagger estava certíssimo: é um saco. A obrigação de ouvir aquilo tudo, aquela imensa quantidade de coisa ruim. Até mesmo a obrigação de ouvir as coisas boas para escrever, comentar. Tudo que é obrigação é um saco.
Devo realmente ser muito doido, para, depois de velho, aposentado, inventar um site de filmes, e transformar em obrigação o que era puro prazer – ver filmes, fazer umas anotações pessoais sobre o que pensei ao ver o filme, as sensações que o filme transmitiu.
Bem fez o Ezequiel, que passou desta – a crítica – para melhor – a produção. Ajudou a revelar Cazuza, foi produtor do Barão Vermelho e do Cazuza na carreira solo, produziu discos de Cauby Peixoto e Elizeth Cardoso.
Grande Ezequiel.
Ao contrário de mim, tinha talento para passar desta para melhor.
***
Hoje, agora há pouco, ao chegar em casa e dar uma olhada nas notícias, vi que Ezequiel passou outra vez desta para melhor. E aí me lembrei de que, uma noite qualquer, alguns meses atrás, depois de tomar algumas, fiz a anotação aí em cima – para nada, só para mim mesmo, pelo puro prazer de escrever, de anotar lembranças. Sempre gostei de fazer isso, muito antes de ler Jane Fonda aconselhando todo mundo a anotar sobre sua vida. Fui atrás da anotação, acrescentei algumas coisas, este parágrafo aqui. E resolvi publicá-la, como uma pequena, humilde homenagem a esse sujeito que foi meu ídolo no final da adolescência, um grande texto, uma grande sensibilidade.
Está virando uma constante tentar homenagear pessoas que se vão. Fazer o quê? Não há como fugir. Perder amigos e conhecidos vai ser mais comum a cada dia.
Salve, Zeca Jagger! Dê um abraço no Cazuza.
O jovem Zeca, a literatura e o teatro antes da música
Humberto Werneck me mandou uma mensagem com informações interessantes sobre o jovem Zeca, ainda em Belo Horizonte, antes de São Paulo e Rio. Pedi a ele autorização para tornar pública a mensagem:
“O Affonso Romano de Sant’Anna me mandou uma entrevista que fez para um jornal de BH em… 1958 e que entrou agora no blog dele (www.affonsoromano.com.br). Não sei se você sabe que entrevistado e entrevistador fizeram parte de um interessantíssimo grupo de BH que ficou conhecido como Complemento e que, sob esse nome, publicou os quatro números de uma revista. Grupo interessante, entre outras coisas, porque, sem que se usasse a palavra, era multidisciplinar. Nele havia gente interessada em literatura (Ivan Angelo, Silviano Santiago, o Zeca e o próprio ARS, por exemplo), em teatro (João Marschner e o Zeca), dança (Klauss Vianna) etc. etc.
Me pareceu que você gostaria de saber o que pensava e dizia o Zeca aos 22 anos. Aqui vai a entrevista, com o “abre” recente by ARS.”
Para ir diretamente ao blog de Affonso Romano, clique aqui.
Alguma noite de 2010, e depois 7 de julho de 2010
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Pois é, Servaz, mais um de nós que se vai. E aqui ficamos, com mais uma enorme carga de saudade.
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Muito legal, Servaz! Conheci o texto de Ezequiel a posteriori, mas mesmo assim foi – tem sido – uma curtição. Publiquei algumas coisas dele no blog: http://bit.ly/c6lBsi.
Abração
Sérgio,
pois é, a gente vai envelhecendo, diariamente – ou quase – alguém se vai, e nossas lembranças embaralhadas tentam se desembaralhar, organizando lembranças e saudades.
Me lembro, por exemplo, de que seu ídolo Ezequiel era tio de Renato Neves de Magalhães, hoje médico, que você não conheceu, mas que, como você, foi meu aluno no Aplicação. E, como você, um aluno muito querido.
Ele era meu vizinho, em Bh, e quando Gilberto me antecedeu na vinda pra São Paulo, era pra casa dele que eu ia, quase todas as noites. A mãe, Raquel, adorável, lutadora (ficara viúva depois de cinco anos de cssada, com quatro filhos, )adorava o irmão, Ezequiel. Tio Zeca, na família. Não havia uma noite em que não se falasse nele.
Minha lembrança mais antiga do Tio Zeca me leva ao Teatro Marília. Por mais que desembaralhe minhas lembranças, não me lembro do nome da peça. Zooógico? Pode ser. Mas nunca me esqueci do ator que, pouco tempo depois, desfilria ao seu lado, com a sacola de discos. Belo ator.
Sérgio, desculpe, meu comentário é um post. Devo estar querendo ocupar seu lugar.
Gilberto pediu pra te dizer que leu, lembrou, se emocionou. Tá dito.
Beijo antigo e amigo
Vivina.
Caro Sérgio,
mais uma vez emocionei-me com seu belo texto. Discordo apenas quando você diz que diferentemente dele, você não tem talento. Tem sim! E muito! Concordo de forma triste quando você diz que despedir-se dos amigos e conhecidos será uma constante daqui pra frente. Sem a menor prepotência, aproveito para citar o poeta William Wordsworth, que está presente nas palavras finais da personagem vivida por Natalie Wood no filme “O Clamor do Sexo”: “(…)mas não devemos sofrer, e sim encontrar forças no que ficou para trás”. Acho inclusive que o título original do filme que é também do poema deveria ter sido preservado:”Splendor in the Grass”.Um abraço!
Caro Sérgio, não conheci o Ezequiel, mas achei delicioso o seu texto. Abraço. Roldão
Meu querido Zeca Jagger-Ezequiel Neves, foi uma bela referência na minha caminhada . Na segunda metade da da década de 70, seculo 20, fiz parte da Banda Punk Ataq Cardíaco , q teve origem em Montes Claros no Norte de M. Gerais . O múltiplo Zeca , junto com Nelson Motta, deram muito espaço para o nosso amadorismo musical . sempre sais notas na Revista Pop ,Jornal de Música, O Globo,Veja ,Manchete …o Ezequiel enchia a nossa bola . Ele morava na rua Francisco Sá, entre Ipanema & Copacabana ,minha irmã Maria Zenália em Ipanema . Então a gente sempre se encontrava nesse território da zona sul do Rio . Eu me amarrava no Zeca & curtia muito as nossas invenções . Já no final de vida dele , estive no lançamento do livro “BARÃO VERMELHO, Porque Que a Gente é assim ” q ele , o baterista Guto Goffi & Rodrigo Pinto escreveram com historias & estorias sobre a banda , e outro momento tomamos 01 chopp em bar da Pça. Gal Osório . Ele era 01 cara muito ativo & nos conhecemos quando ele ainda produzia o Made In Brazil. Onde quer q ele esteja…Viva o Zeca Jagger ! – Aroldo Pereira-Montes Claros-Norte de Minas Gerais
Olá, Aroldo!
Que maravilha receber esse seu depoimento!
Meu, dá uma sensação de que vale a pena fazer este site, estes textos.
Muito obrigado!
Sérgio