A decisão dos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia de anular a sentença que condenou o ex-presidente da Petrobrás Adelmir Bendine por corrupção passiva e lavagem de dinheiro durante os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff deverá passar para a História como um dos erros mais crassos, mais absurdos e de potencial mais danoso para o país jamais cometidos pelo Poder Judiciário brasileiro.
Um dos maiores. Talvez o maior.
É uma decisão tão grave, tão estapafúrdia, tão inconstitucional, que chega a transformar em coisa pouca aquela outra, cometida pelo mesmo Ricardo Lewandowski, em agosto de 2016, quando inovou, criou, ao dividir a pena assegurada ao presidente condenado em processo de impeachment, e retirou Dilma Rousseff do cargo mas preservou seus direitos políticos.
Ao anular a sentença proferida em primeira instância pelo então juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, os três ministros passaram por cima também de decisões de dois órgãos colegiados, um da segunda e outro da terceira instância, o Tribunal Federal da 4ª Região e o Superior Tribunal de Justiça, que haviam validado a decisão original de Moro.
Com isso, arrebentaram a porteira para soltar corruptos – já que a decisão poderá levar à anulação de pelo menos 32 sentenças, envolvendo 143 réus, ou 88% dos 162 condenados até hoje pela Operação Lava-Jato no Paraná.
Para anular a sentença de primeira instância que já havia sido avalizada em segunda e terceira instâncias – e com isso abrir caminho para garantir a impunidade de 88% dos condenados pela Lava jato, é bom repetir – os três ministros inovaram, foram “criativos”, para usar a expressão de Merval Pereira. Inventaram. Criaram uma diferenciação entre réus em processos criminais de que nenhuma lei brasileira trata.
Ou seja: os três ministros legislaram.
Avançaram sobre o que é privilégio único e exclusivo de outro dos três poderes da República, o que existe exatamente para isso, para legislar, o Congresso Nacional, o Poder Legislativo.
Os três ministros da Suprema Corte, que estão ali para fazer cumprir as leis, descumpriram a Lei Maior, a Constituição, e fizeram algo que não cabe a eles fazer. Legislaram. Criaram uma nova lei que não existia. Inventaram.
(É forçoso registrar que o ministro Edson Fachin votou contra os três; o quinto membro da Segunda Turma, o decano Celso de Mello, ausente por doença, não votou.)
“A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal exerceu o direito de errar por último, como Rui Barbosa definiu ser prerrogativa do STF”, escreveu Merval Pereira em seu artigo no Globo da quinta-feira, 29/8.
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O ex-ministro e ex-presidente do Supremo Sydney Sanches – que, ao contrário de Lewandowski, conduziu com total isenção e correção o processo de impeachment de outro presidente da República, Collor de Mello – definiu de maneira claríssima o que aconteceu no julgamento da Segunda Turma. Não é preciso ser advogado, não é preciso compreender citações em Latim para entender o que ele diz. É pura lógica:
”A lei processual diz que o prazo das alegações finais é o mesmo para todos os réus. A acusação tem o prazo dela, e a defesa dos réus tem o mesmo prazo em seguida. Não se faz distinção de um réu que é acusado por outro, o que acontece em ações comuns. Há processos sem delatores em que um réu põe a culpa no outro. Não foi ilegal o que foi feito pelo Sergio Moro (dar o mesmo prazo de alegações finais para réus delatores e não delatores). Em face da lei de delação premiada e entendendo que os delatores não são só réus, mas acusadores, a Segunda Turma achou por bem que deveria se abrir um outro prazo para a defesa dos réus não delatores. É uma construção. Não é prevista na lei, mas uma solução encontrada para que a defesa não fique sacrificada. Não é uma aplicação pura e simples da lei, mas uma decisão para uma situação nova.”
Quem entrevistava o ex-ministro Sydney Sanches era a repórter Juliana Castro, de O Globo. Boa repórter, Juliana fez a pergunta direta:
“Como o senhor teria votado?”
O veterano juiz não tergiversou, não saiu pela tangente, não enrolou, não veio com latinório:
“Eu teria aplicado o Código de Processo Penal como está. A lei tem que ser aplicada. Quem quiser, que mude a lei.”
Educado, acrescentou: “Mas como eu votaria não importa agora.”
“A lei tem que ser aplicada. Quem quiser, que mude a lei.”
É simples assim. É claro como água da fonte.
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Neste domingo, 1º de setembro, o jornalista Josias de Souza publicou em seu blog dois textos daqueles que são absolutamente imprescindíveis, fundamentais, imperdíveis. Ele examinou todo o processo de Aldemir Bendine, e, em um primeiro texto, mostrou a argumentação do juiz Sérgio Moro e do desembargador Félix Fischer, do TRF-4, quanto à não existência de duas classes, dois tipos de réus – a diferenciação usada pelos três ministros para anular o julgamento do ex-presidente da Petrobrás no tempo do petrolão.
Em um segundo texto, Josias de Souza revela o que ainda não havia sido dito até aqui neste caso chocante: não apenas o então juiz Sérgio Moro não cerceou a defesa de Bendine, como foi generoso com ela. Generoso. Bonzinho.
“Moro relatou que marcara o interrogatório de Bendine para 22 de novembro de 2017. “Na ocasião, Aldemir Bendine, orientado por seu defensor, preferiu ficar em silêncio”, recordou o então magistrado. De repente, a defesa de Bendine pediu o agendamento de nova inquirição. O réu queria falar.
“Embora já estivesse fora do prazo previsto no Código de Processo Penal para o interrogatório, Moro decidiu atender ao pedido. Escreveu: “Este Juízo, a bem da ampla defesa, deferiu, nos termos da decisão de 19/12/2017, novo interrogatório, que foi realizado em 16/01/2018.″
Mais ainda. Sim, mais ainda:
“O blog leu todas as ‘alegações finais’. Não há acusações novas nas peças dos delatores. Preocuparam-se em consolidar as próprias revelações, credenciando-se para usufruir de recompensas judiciais como a redução da pena. (… ) A idéia de que os delatores podem surpreender o delatado nas alegações que antecedem o veredicto não resiste a uma análise dos autos. Felix Fischer, o relator da Lava Jato no STJ, encadeou as diversas fases processuais para demonstrar que é próxima de zero a hipótese de o acusado e seus defensores serem surpreendidos com coelhos retirados pelos delatores da da cartola no último ato antes da sentença do juiz.”
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Faço aqui uma consideração muito pessoal.
Os votos de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski não surpreendem nem um pouco. Todas as pessoas que têm noção das coisas, que são bem informadas, ou seja, que lêem a imprensa livre e independente, sabem perfeitamente quem são esses dois. Lewandowski é um ativista do PT, um cão fiel bajulador do amigão Lula. Gilmar é um soltador compulsivo; se estivesse entre os juízes de Nuremberg, Gilmar teria soltado todos os criminosos nazistas, sem exceção, e, da mesma forma, se estivesse num tribunal internacional que julgasse Stálin, soltaria o genocida. Não é uma questão ideológica. Sei lá. Se não tiver a ver com dinheiro, que viciou na coisa de soltar, deve seguramente ser algo psiquiátrico. Uma obsessão, uma mania.
Já Carmen Lúcia…
Reportagens e análises mostraram que o voto dela foi surpreendente até mesmo para alguns de seus colegas.
Merval Pereira, um jornalista que presta especial atenção ao STF, que parece conhecer bastante aquele estranho arquipélago de 11 ilhas independentes umas das outras, diz que as conversas íntimas entre o então juiz Moro e os procuradores de Curitiba – vazadas e instrumentalizadas pelos interessados em soltar o presidiário Lula – podem ter influnciado na decisão da ministra Carmen Lucia.
Que pena. Que grande pena.
Que tristeza que pecados cometidos pela Lava Jato sirvam agora de pretexto para acabar com tudo de bom que a Lava Jato fez para o país.
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Aqui vão, na íntegra, os dois textos de Josias de Souza. Desde já dá para garantir que são um trabalho jornalístico antológico. Histórico.
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STJ e TRF-4 avalizaram procedimento que anulou sentença de Moro no Supremo
Por Josias de Souza
Ao anular a sentença da Lava Jato que condenara Adelmir Bendine por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal não constrangeu apenas o ex-juiz Sergio Moro. Contrariou também o Tribunal Regional Federal da 4ª Região e o Superior Tribunal de Justiça, que avalizaram o procedimento utilizado como pretexto para cancelar o veredicto.
Os advogados do condenado recorreram ao Supremo para reclamar de um suposto erro processual. Alegaram que Bendine, como réu delatado, teria que levar sua última manifestação ao processo depois de conhecer as alegações finais dos réus que o delataram. Queixaram-se de “cerceamento de defesa” porque Moro abriu um prazo único para o pronunciamento de todos os réus. Por 3 votos a 1, a turma do Supremo deu razão aos defensores de Bendine.
A reclamação naufragara nas três primeiras instâncias do Judiciário. “A lei estabelece prazo comum para a apresentação de alegações finais” dos réus, anotou Sergio Moro em sua decisão. “Não cabe à Justiça estabelecer hierarquia entre acusados, todos com igual proteção da lei.” O TRF-4 ecoou o então juiz. Relator da Lava Jato no STJ, o ministro Felix Fischer também endossou o entendimento de Moro.
Fischer sustentou: “Não há qualquer irregularidade apta a macular o feito de nulidade, inexistindo tanto no Código de Processo Penal ou mesmo na Lei número 12.850/13 [Lei das Delações], qualquer dispositivo que autorize eventual tratamento diferenciado entre corréus, seja colaborador o não.” O ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo, conduziu seu voto para o mesmo trilho: “O acusado, ao adotar postura colaborativa como meio de defesa, não passa a integrar o polo acusatório.” Fachin acrescentou: “O exercício do direito de defesa por tais meios [as delações] não faz com que o agente colaborador integre a acusação ou que funcione como assistente do Ministério Público”. Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia discordaram.
De acordo com a tese da defesa, a ausência de previsão legal não autoriza a Justiça a desconhecer o direito do réu delatado de falar no processo depois dos réus que o delataram. Nessa versão, prevaleceria o princípio constitucional que assegura aos acusados o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Felix Fischer, o relator da Lava Jato no STJ, considera “tentadora” a tese segundo a qual o instituto da delação teria produzido um “vazio normativo”, a ser preenchido por um valor constitucional. Mas ele se contrapôs a essa visão em seu despacho. Para Fischer, o que há é uma “opção do legislador ordinário, a quem legitimamente compete, por força da mesma Constituição Federal, fixar os ritos processuais adequados.”
Foi como se Fischer declarasse, com outras palavras, algo assim: “Criar leis é atribuição do Legislativo, não do Judiciário.” Se desejasse diferenciar delatores de delatados, permitindo aos dedurados falar por último nos processos, o Congresso teria feito isso quando aperfeiçoou, em 2013, o mecanismo da delação. “O devido processo legal constitucional tem como norte a Carta Política [a Constituição], mas não sobrevive isoladamente sem observâncioa da lei adjetiva, que é o instrumento legal qe lhe dá contornos”, escreveu Fischer.”
Em março de 2018, quando ainda dava expediente na 13ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro condenou Adelmir Bendine a 11 anos de cadeia por receber propinas de R$ 3 milhões da Odebrecht. A defesa recorreu ao TRF-4. Ali, a pena do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras foi reduzida para 7 anos, 9 meses e dez dias. Os advogados recorreram novamente. Faltava julgar este derradeiro recurso para que Bendibe fosse para a cadeia.
Prevalecendo o novo entendimento da Segunda Turma, o caso de Bendine fará o caminho de volta. Retornará à 13ª Vara Federal de Curitiba, para que sejam refeitos os procedimentos finais do julgamento. Numa conta feita pela força-tarefa de Curitiba, a decisão da Segunda Turma provocará um efeito dominó com potencial para derrubar 32 sentenças. Juntas, envolvem 143 réus, entre delatores e delatados. Isso corresponde a 88% dos 162 condenados que a Lava Jato já sentenciou.
Num esforço para reduzir danos, Edson Fachin pediu uma manifestação do plenário do Supremo sobre a encrenca. Deseja reverter a decisão da Segunda Turma ou, no mínimo, aprovar algo que se pareça com um meio termo. Uma das hipóteses que estão sobre a mesa é a de restringir a anulação de sentenças aos casos em que os réus apresentaram recursos na primeira instância contra a fixação de prazos simultâneos para a apresentação das alegações finais de delatores e delatados. Ficaria entendido que, se não houve reclamação na origem, é porque os réus estavam satisfeitos com o rito processual.
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Sergio Moro: Houve ‘generosidade’ com a defesa de Bendine, não cerceamento
Por Josias de Souza
Na sentença em que condenou Aldemir Bendine por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em março de 2018, o então juiz Sergio Moro ironizou as queixas dos advogados do réu. “A alegação da defesa de que foi cerceada não reflete a realidade do processo, antes tendo ela e seu cliente sido tratada com generosidade.”
Moro relatou que marcara o interrogatório de Bendine para 22 de novembro de 2017. “Na ocasião, Aldemir Bendine, orientado por seu defensor, preferiu ficar em silêncio”, recordou o então magistrado. De repente, a defesa de Bendine pediu o agendamento de nova inquirição. O réu queria falar.
Embora já estivesse fora do prazo previsto no Código de Processo Penal para o interrogatório, Moro decidiu atender ao pedido. Escreveu: “Este Juízo, a bem da ampla defesa, deferiu, nos termos da decisão de 9/12/2017, novo interrogatório, que foi realizado em 16/01/2018″.
Na última terça-feira, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal anulou a sentença de Moro. Aceitou a tese do cerceamento de defesa com base num procedimento não previsto em lei. Alegou que, por ter sido alvo de delação, Bendine deveria ter falado por último no processo, depois da manifestação dos delatores. Moro indeferiu o pedido. Anotou que a lei não faz distinção entre réus. Concordaram com ele o TRF-4 e o STJ.
Num despacho de abril de 2018, o ministro Felix Fischer, relator da Lava Jato no STJ, concordou com a avaliação de que Moro brindara a defesa com tratamento generoso. “Em análise do compasso procedimental, denota-se que foi garantido ao paciente [Bendine] a plena concretizaçao do contraditório, por meio do exercício da sua mais ampla defesa.”
Fischer realçou o fato de Moro ter concedido ao acusado, fora do prazo legal, a oportunidade de um segundo depoimento. “…Mesmo encerrada a instrução processual, foi possibilitado novamente o reinterrogatório do paciente [Bendine], uma vez que optou por ficar em silêncio no primeiro ato.”
Há no processo quatro delatores. Três eram vinculados à Odebrecht: Marcelo Odebrecht, Fernando Luiz Ayres da Cunha Santos Reis e Álvaro José Galliez Novis. O outro chama-se André Gustavo Vieira da Silva. Apontado como intermediário de Bendine no recebimento de propinas, ele se tornou um réu confesso ao longo do processo. No recurso que levou a Segunda Turma do Supremo a anular a sentença, a defesa se queixou do fato de Moro ter intimado delatores e delatados para apresentar suas “alegações finais” ao mesmo tempo. Alegou-se que, como delatado, Bendine deveria se manifestar por último, depois de conhecer as acusações dos delatores.
O blog leu todas as “alegações finais”. Não há acusações novas nas peças dos delatores. Preocuparam-se em consolidar as próprias revelações, credenciando-se para usufruir de recompensas judiciais como a redução da pena. Marcelo Odebrecht, por exemplo, a despeito de ter colaborado neste e em outros processos, teve de amargar mais de dois anos de prisão em regime fechado.
A ideia de que os delatores podem surpreender o delatado nas alegações que antecedem o veredicto não resiste a uma análise dos autos. Felix Fischer, o relator da Lava Jato no STJ, encadeou as diversas fases processuais para demonstrar que é próxima de zero a hipótese de o acusado e seus defensores serem surpreendidos com coelhos retirados pelos delatores da da cartola no último ato antes da sentença do juiz.
Os “contornos” da encrenca “foram traçados na denúncia e na instrução, inclusive em depoimentos de corréus, com a participação da defesa”, escreveu Fischer. No andamento do processo, “resta assegurado o contraditório e a ampla defesa”. Nesse contexto, as alegações finais constituem mera oportunidade para que os defensores exerçam o derradeiro esforço para convencer o juiz.
No caso de Aldemir Bendine, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras no governo de Dilma Rousseff, o esforço da defesa não livrou o personagem da condenação. Moro fez questão de refutar o argumento segundo o qual Bendine foi lançado no rol dos culpados apenas com base na palavra dos delatores.
“A presente ação penal sustenta-se em prova independente, principalmente prova documental colhida em quebras de sigilo fiscal e bancário, bem como em diligências de busca e apreensão”, escreveu Moro na sentença. “Rigorosamente, foi o conjunto probatório robusto que deu causa às colaborações [dos delatores] e não estas que propiciaram o restante das provas. Há, portanto, robusta prova de corroboração,que em parte preexistia à própria contribuição dos colaboradores.”
Ao anular a sentença, na última terça-feira, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deu de ombros para as evidências do recebimento de propinas de R$ 3 milhões.
1º/9/2019
Meus parabéns Sérgio Vaz pelo brilhante trabalho que somente os excelentes jornalistas, éticos, independentes e corajosos são capazes de fazer. Mais do um prazer, é um orgulho ser seu amigo e contemporâneo e redações que não se fazem mais.
Grande Moacyr!
Muito, mas muito, mas muito obrigado, caríssimo Moacyr!
Você não pode imaginar a alegria que me dá receber sua mensagem!
Um abraço apertado, saudoso!
Sérgio
Caro Sérgio Vaz,
Peço licença para discordar de sua posição, daquela do Josias de Souza e daquela do Ministro Sydney Sanches.
Há alguns elementos de direito constitucional que não podem ser simplesmente ignorados. O fato de as leis processuais penais que regem a delação premiada não preverem o tratamento diferenciado entre delator e delatado como réus não implica que tal diferença não seja constitucionalmente adequada. Primeiro, há o princípio geral do in dubio pro reo, que também se aplica na interpretação da lei processual, devendo a interpretação ser aquela mais favorável ao réu. Segundo, as situações de delator e delatado não são as mesmas. O delator já negociou conteúdos, documentos e estratégias com acusador e juiz durante toda a investigação, em sigilo. Sabe o que ambos pensam sobre sua postura, sobre o que têm para apresentar e o que estão dispostos a considerar. O denunciado não tem as mesmas condições e, em regra, é tratado com animosidade pela acusação e, muitas vezes, pelo juiz da causa. Lembre-se de que, em países decentes, o juiz da instrução não é o juiz que julga o caso. Já aqui no Brasil o juiz instrui, negocia e julga, o que leva ao aumento das alegações de sua suspeição, pois, ao participar da produção da prova, deixa de ser imparcial. Considere, ainda, que o MP tem equipe e infraestrutura muito bem aparelhados, além de contar com auxílio da polícia, algo com que os réus não contam na imensa maioria das vezes. Saber quais são as provas, dominar a narrativa e conhecer as posições da acusação e do juiz que julgará a causa são vantagens enormes, algo com o que não conta o réu delatado. Imagine, então, quando, dentre vários réus no mesmo processo tem-se vários delatores. Há, penso, desrespeito ao princípio da paridade das armas no processo judicial. O delator, mesmo na alegação final, sempre acrescenta algo com o que não conta o delatado, pois o delator precisa argumentar as razões do tratamento benéfico pleiteado e negociado na delação premiada, o que implica ampliar a carga de culpa do delatado. Ainda que isso não acrescente conteúdo ou prova ao processo, são argumentos novos, ainda não analisados pelo réu delatado. Ou seja: é, sim, sempre um elemento de surpresa. E, em direito, o último a falar é sempre aquele que recebeu alegações contra si. Acrescento que, em direito constitucional, há a proibição da proteção insuficiente, o que não é uma jaboticaba, mas um chucrute. Assim, é muito plausível, diante do que expus, entender que tratar da mesma forma réus que estão em situações diferentes não protege suficientemente o direito fundamental à ampla defesa e ao contraditório (não afirmo que essa é uma interpretação necessária, mas que está em perfeito acordo com a boa razão jurídica). Ademais, umas das regras básicas de hermenêutica constitucional é que a interpretação, em caso de dúvidas, sempre deve ser aquela mais favorável à proteção do direito fundamental em jogo (nesses casos, a interpretação deve ser extensiva, não restritiva). Enfim, os juízos deveriam ter adotado o princípio da precaução. Veja que, quando você diz que o Moro foi “bonzinho” com Bendine por ter dado segunda oportunidade para depoimento, ele nada mais fez que usar o princípio da precaução, evitando, assim, que a ausência de depoimento pudesse gerar futura nulidade da sua sentença. O Ministro Félix Fischer, no meu entender, foi perfeito na sua decisão, caso tenha sido via recurso (não fui atrás do processo para saber): afinal, não é dado ao STJ, em recurso especial, analisar alegação de inconstitucionalidade, pois é instância de uniformização da aplicação e interpretação da lei federal. Se foi via habeas corpus, creio que ele cometeu os mesmos erros dos demais. Já as instâncias inferiores, como fazem o controle difuso de constitucionalidade, deveriam ter considerado a questão. Tivessem sido precavidos (ou “bonzinhos” como Moro foi na questão do depoimento), nada disso teria acontecido. Você e o Josias de Souza, jornalistas, cometerem falhas na análise em razão da falta do domínio jurídico é perdoável. Contudo, confesso que ver uma análise tão simplória vinda de alguém que foi Ministro do STF foi bastante assustador.
Perdoe-me o longo texto e espero contribuir para a sua reflexão.