Grande filme de bullying

Que rápidas as pernas de Walter Pitts. Não são formosas, nem são seguras. Correm velozes à frente de dez pares de pernas perseguidoras, que se tivessem olhos e os olhos fossem balas, há muito Pitts teria sido abatido.

Estas são as ruas de Detroit, Abril ou Maio de 1935, bem piores do que as doces ruas do meu bairro colonial de Luanda. Têm só uma vantagem. Mesmo ali, num bairro cuja lei é murros nas trombas e chapadas no semblante, há uma biblioteca. Walter Pitts, doze anos, de esquindiva em esquindiva, despista os agressores que lhe querem malhar carne e ossos e enfia-se nela.

Entre aquelas estantes e livros está em casa, como em sua casa jamais estará em casa. O pai é de ferro operário, punhos de pau-preto. Manda-o sair da escola todos os dias, com argumentos físico-sonoros. Desde os nove anos que Walter esconde o fio dos seus dias nesta fortaleza de papel. Come livros, namora livros, reza neles. Os livros são a sua pomba de obra e graça do Espírito Santo: põem-no a falar línguas. Em três anos, aprendeu latim e grego. E mais duas línguas vivas: matemática e lógica. Ralph Macchio, em Karate Kid aprende tudo com um mestre. Pitts aprendeu sozinho em conversas de papel pardo.

Nessa noite, Pitts não arrisca. Dorme na biblioteca. Abre um livro do tamanho do Kilimanjaro, o Principia Mathematica, de Russell e Whitehead. E à Cunhal, durante três dias e três noites, já não deslarga. Clandestino, militante, lê e anota, faça lua ou sol, aquela alcantilada serra de papel. Descobre erros e manda para Cambridge uma carta a Bertrand Russell, que se espantou como só Arquimedes se espantara – eureka –, no seu banho de imersão. Russell convidou o miúdo para Cambridge. Os encolhidos doze anos de idade impediram-no.

Devia ser um filme. Como à Sissy Spacek de Carrie, os atestos de porrada dos outros miúdos deram poderes a Pitts. Cristo crucificou-se para salvar o mundo? Pitts fez da lógica e da matemática a sua cruz salvífica. Fugiu de casa aos 15 e deixou-se andar, sem abrigo, pela Universidade de Chicago. Criaria um modelo artificial para um neurónio biológico, desencadeando uma revolução cognitiva, das neurociências à inteligência artificial. Não tenho espaço para explicar, mas por causa de uma rã, morreu como um revolucionário, deprimido e encharcado em copos.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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