Já fui, como Clark Gable, um perigo para os peões. Tive dois carros antes de ter a carta. Primeiro, um lendário 2CV, a seguir um imaculado MGM descapotável.
Eram tempos de alguma displicência legal. Foi na Angola pós 25 de Abril e imediatamente pós-independência, o que iliba José Eduardo dos Santos de responsabilidade nessa lassidão jurídica.
É dos manuais: toda a ilegalidade carreia no seu executor um suplemento vitamínico de consciência. É verdade: ao contrário de Clark Gable, herói de E Tudo o Vento Levou, não espatifei nenhum dos preciosos carros.
Gable esbardalhou-se em grande estilo, plena Sunset, larga avenida da cálida cidade de Los Angeles. Há quem diga que foi em 1933, num contexto de amorosa angústia existencial; outros falam de 1945, em comemoração patriótica pela vitória do soldado americano em Iwo Jima.
Eu ardo em pulgas para que os meus leitores aceitem a definição de “realismo” da Stanford Encyclopedia of Philosophy, a saber, há coisas cuja existência é independente das nossas crenças, práticas linguísticas ou esquemas conceptuais. Uma delas, mesmo se não mencionada na sagaz e referencial enciclopédia, é que Clark Gable estava bêbado, fosse qual fosse a data, fosse qual fosse a causa.
E é aqui que a democrática lassidão jurídica los angelina abraça a lassidão jurídica desse processo de descolonização que eu vivi ao volante e de olhos nas estrelas do céu, a sul do Equador. Corre o rumor de que Gable atropelou fatalmente uma mulher. Outros dizem que só um eucalipto, antecipando o justo e fundado pó que hoje lhes tem Miguel Sousa Tavares.
Antes que chamassem a polícia, já repicava o telefone de Howard Strickling, angélico mix de Gabriel e Lúcifer, homem de mão do estúdio de Gable, a grande MGM. Howard controlou e branqueou tudo. É que não há sequer uma fotografia de Gable estendido no chão a sangrar. E diz-se que um funcionário da MGM foi por ele cumprir pena por homicídio involuntário, embora circule que essa versão, afinal, se passou com John Huston, em 45, e que, em 33, Gable se ferrou só contra o inopinado eucalipto, vindo de afogar em uísques e dry-martinis a nega de Joan Crawford, com quem lhe estava mesmo a apetecer um exuberante adultério.
Ao meu 2CV pegou-lhe fogo a Unita, no Lobito; o MGM ainda zune, vintage, em Luanda.
Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.