Mas quem é que não vai ao cinema para matar ou morrer? No cinema abraça-se, beija-se, acaricia-se, come-se. Come-se tudo. O cinema é a cama de toda a virgindade: ali se perde, ali se volta a ganhá-la.
Agora que banqueiros, primeiros-ministros, mesmo juízes são interrogados, todo o cinéfilo deve preparar-se para ser arguido e responder a esta lista, batoteiro questionário de Proust, em que serei o primeiro a ser enxovalhado. Comecemos:
Filme com a melhor canção na boca de uma personagem?
O filme é One From The Heart, o aeroporto é o de Las Vegas e a boca é de Frederic Forrest. De virilidade encolhida, canta malíssimo, e portanto muito bem, “You’re My Sunshine” à mulher que o deixa e entra no avião com o amante. Também podiam ser sete bocas em luto redentor, as de Meryl Streep, De Niro e outros, a cantar “God Bless America”, no final de Deer Hunter, filme que dá bom nome ao patriotismo.
Filme com a canção mais bem ligada à trama?
O Casablanca sufocaria sem o oxigénio de “As Time Goes By”. Mas isso é para quem só queira as doces mariquices de Deus. Se querem ter na espinha um arrepio do Diabo, ouçam o “Time Is On My Side”, no “Fallen” de 1998. O medo, o mal, a possessão demoníaca de Elias Koteas são tão arrebatadores que só apetece dizer “shit lá para o paraíso”.
Filme para ver antes de perder a virgindade?
Pondo logo de lado a megalomania de Boogie Nights, que o tamanho aqui complica, e em vez de escolher o óbvio Summer of ’42, se procura um lírico estremecimento e supremo êxtase, veja o italiano Stromboli, fusão de uma mulher, Ingrid Bergman, e de um convulso vulcão. Monica e o Desejo, de outro Bergman, Ingmar, prova que a Suécia é bem mais do que o mobiliário, pau e camas do IKEA.
Filme para ver depois de perder a virgindade?
Duas hipóteses. Correu muito mal? Ver o Alien pode ser a forma de compensação: vistas as coisas pelos olhos de Sigourney Weaver podia, afinal, ter sido bem pior. Mas se correu tudo entre melosas lágrimas e suspiros mozartianos, corra ao cinema e dance e cante na cadeira o “Singin’ in the Rain”. No caso de ser já jovem intelectual e, naturalmente, antiamericano, que para isso é que é há cursos de filosofia, mobilize-se para ver a bela Lola, de Jacques Demy.
Agora, o arguido tem direito a descanso. Para a semana há mais justiça.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Nota do administrador: Ao reproduzir este texto no blog Escrever é Triste, Manuel S. Fonseca fez a seguinte introdução:
Este é o primeiro volet de um inquérito cinéfilo. A continuação, segunda e última parte, podem lê-la no Expresso em papel de hoje (17/2/2018) – e poupem-me a essa enervante conversa de “ai, eu deixei de ler o Expresso, só leio de vez em quando online o New York Times”. Por amor da santa, querem matar-me e ao Henrique Monteiro à fome?