Nestes tempos de anátema e de obscurantismo, constantemente a cultura e a educação têm sido alvo de uma cruzada retrógada. Os episódios se sucedem aos borbotões, dando conta de que estamos diante de algo muito mais extenso e profundo do que as exóticas “Senhoras de Santana” dos anos 80 ou dos estandartes medievais da antiga TFP – Tradição, Família e Propriedade.
Vamos aos fatos:
1 – O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, impediu o Museu de Arte do Rio de abrigar a exposição QueerMuseu, a mesma que o Santander suspendeu por pressões de brigadas virtuais. Evangélico, o alcaide carioca atribuiu-se a função de censor e de crítico de arte, com poderes de determinar o que seus munícipes podem ou não ver.
2 – O ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão reuniu-se com parlamentares das frentes Evangélica, Católica Apostólica Romana e em Defesa da Família irritados com a exposição QueerMuseu e a performance Le Bête, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O ministro fez coro às críticas da bancada religiosa a Le Bête, e se comprometeu em introduzir um artigo na Lei Renault para atender aos reclamos dos religiosos.
O prefeito João Doria também não deixou por menos. Surfou nas críticas ao MAM por meio de um vídeo comentado por 157 mil pessoas em suas redes sociais. Perfil de seus comentadores: 62% homens, 40% evangélicos e 82% de direita. Na sua esmagadora maioria são brancos da classe média entre 35 e 45 anos.
3 – A coluna Poder em Jogo, do jornal O Globo, informa que o ministro da Educação Mendonça Filho vem sendo pressionado pela bancada evangélica para impedir o Conselho Nacional de Educação de inserir menções sobre identidade de gênero e orientação sexual na versão final de Base Nacional Curricular Comum. Se ceder aos religiosos, o ministro contrariará recomendação de educadores, especialistas e instituições da Educação consultados pelo Ministério.
4 – O Colégio São Luiz, um dos mais tradicionais de São Paulo, foi alvo do ataque – os quais o seu reitor, padre Carlos Alberto Contieri, chamou de “cibermilícias católicas” – devido a uma palestra do médico, cientista e escritor Dráuzio Varella para pais de alunos. Fundamentalistas como os membros da Fraternidade Laical São Próspero acusaram o São Luiz, uma instituição com 150 anos de existência e dirigida por jesuítas, de promover a ideologia de gênero, pois a palestra abordaria temas transversais de gênero e de sexualidade.
5 – Tramitam no Congresso Nacional e em diversas casas legislativas projetos de lei inspirados no programa Escola sem Partido, que tem por objetivo monitorar os professores nas salas de aula e promover verdadeira caça às bruxas. Propositadamente, confundem a abordagem pedagógica sobre identidade de gênero e orientação sexual com proselitismo do que chamam de “ideologia de gênero”. As milícias do Escola sem Partido hostilizam educadores e instituições que não rezam por sua cartilha.
6- Sem o mesmo teor fundamentalista, mas nem por isso menos lamentável, o STF fez o Brasil retroagir ao período do Império, quando não havia a separação entre religião e Estado. A Suprema Corte considerou constitucional o ensino confessional nas escolas públicas, uma violação ao caráter laico da educação pública.
Não estamos diante de fatos sem relação entre si, mas sim de um movimento engendrado por forças conservadoras e moralistas para fazer o pais retroagir em matérias de valores tão caros aos brasileiros como o respeito à diversidade, ao pluralismo, à livre circulação das ideias e à liberdade de expressão.
A supressão de tais valores é pré-condição para a imposição do pensamento totalitário que, a exemplo da Santa Inquisição, usa a religião para coibir a ciência e as artes e impedir o desenvolvimento do ser humano. Não há criatividade artística sem liberdade de expressão, assim como é impossível uma educação de qualidade em ambiente de macarthismo nas escolas.
Vivemos no limiar de uma nova era, onde a robótica e a inteligência artificial terão tremendos impactos sobre o mundo do trabalho e a sociedade. Nesse novo quadro, cada vez mais a educação é solicitada a dar uma formação holística aos seus alunos, ensinando-os a discernir o certo do errado, a relacionar a parte com o todo e a desenvolver o pensamento crítico.
É impossível o sistema educacional formar profissionais e cidadãos para este novo mundo em uma redoma de vidro ou em ambiente monocromático, como querem impor os neofundamentalistas – laicos ou religiosos.
O inquietante é que a cruzada moralista tem contado com aquiescência de autoridades e instituições que se deixaram emparedar. Ou por populismo demagógico ou porque elas mesmas buscam impor suas concepções religiosas e morais ao conjunto da sociedade. Por aí, a educação e a cultura estarão sob o tacão da ditadura do pensamento único.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 11/10/2017.