Façam como John F. Kennedy, não me perguntem o que tenho de parecido com Russell Crowe, perguntem antes o que tem Russell Crowe de parecido comigo. Em Fathers and Daughters, melodrama piegas em que só eu, um crítico de Newark e aquele povo mais dado ao mês de Agosto chorámos, Crowe tem uma filha. Na vida real, é pai de dois rapazes, mas só o cinema lhe deu o que a mim a vida já não me tira, ser pai de uma filha.
Tu sabes, Russell, que um pai é o tipo atrapalhadíssimo – a mãe a gritar da cozinha “muda-lhe a fralda, estou a fazer a papa” – que pela primeira vez, começando com toalhetes perfumados, dois dedos já sujos (oh meu Deus, como aquilo se mete debaixo das unhas), o lençol branquinho da cama em último recurso, limpou o rabinho ao filho ou filha, soltando grrs! e outros horrores guturais, doido por ir afogar o susto e o cheiro nuns finos da tasca de caracóis da esquina.
Mas há coisas, Russell, que só mesmo uma filha. Uma filha sabe que tem um pai quando ele, em delírio, lhe fala de coisas horríveis, que ela não quer ver nem em sonhos: vinte e dois tipos a correr atrás de uma bola, foras-de-jogo, clamorosos erros de arbitragem. E esse pai sabe que é pai porque a ouve exclamar “PAI!”, num tom maiúsculo, entre o desabafo e o começo de feminina fúria, que é quase um juancarlista por qué no te callas. O tipo que a seguir se cala, garanto-te, Russell, é um pai.
E olha, Russell, o pai de uma filha é o tipo que já não sabe se há-de rir ou chorar, quando lhe oferece uma Barbie e a filha, que sabe muito bem, com um raio de um imenso carinho escondido, que ele é pai, lhe diz: “Que bom, é a quinta Barbie africana que me dás.”
Não te sintas rejeitado, Russell, mas pai é o terceiro excluído, o que ouve a mulher dizer, “agora, vai lá para dentro que a tua filha e eu precisamos de conversar as duas.”
Pai de uma filha é um tipo sem jeito, factor essencial para a filha o reconhecer como pai. E apesar da canhestrice e do ostracismo de género a que é submetido, um tipo sabe que é pai. Esse pequenino amor condescendente de um beijo na testa, de uma festinha mais à bruta que nos faz cair os óculos – ficam-te bem os óculos, Russell –, é uma forma feminino-filial de nos dizerem: “Coitadinho, és meu pai.” É um amor do tamanho de um bago de arroz. Mas é um bago de arroz-doce.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.