Tomai e comei

Que coisa exprime hoje as nossas esperanças ou o nosso mal-estar? Que filmes, livros ou canções? Os filmes de Pedro Costa, de Malick ou o Fast and Furious 8?

Há coisas que não me saem da cabeça. A ideia de subversão foi-me instilada pelo ancien régime. Aquilo, a superfície que se colhia, de tão cinzenta, pedia subversão. A perseguição dos subversivos feita pela PIDE, os filmes e livros que proibia mais justificavam a aura sexy que a subversão tinha aos meus olhos.

E não havia nada mais subversivo aos meus olhos do que a arte. Mais do que incendiar-se o carro do Professor Martinez, mais do que receber o Avante em papel bíblia, mais do que alfabetizar o musseque com o método Paulo Freire, as minhas esperanças e o meu mal-estar tinham a cara de Anna Karina e Jean-Paul Belmondo no Pierrot le fou. Tinham a voz torrencial com que se lia o Uivo de Ginsberg.

No Lobito, no meio da luta entre o MPLA e a UNITA, no escasso apartamento de duas camas no chão e mesa periclitante onde pousavam Akás, as paredes estavam pejadas de rectângulos de papel com gritos de Rimbaud, de Ramos Rosa e Herberto Helder. O maoista que fui, nunca o fui de facto por falta de subversão intestina que o maoismo não me dava e tive de procurar, Deus seja louvado se Deus é para aqui chamado, em livros e filmes.

Não me lembro onde, mas tenho a certeza de que o crítico Eric Rohmer disse um dia, sobre Stromboli, de Rossellini, que esse era um filme no qual se louvava a verdadeira subversão, a do amor conjugal, um filme que “exalta a esposa e já não a aventureira, a doçura do lar e não o romantismo dos bares”.

E hoje, o que é mesmo subversivo? Cantar a liberdade ou cantar a moral? Num mediano mas divertido filme italiano, Se Deus Quiser, uma família de classe alta, tolerantíssima, está pronta a ouvir uma confissão do filho. Pensam que ele é gay, mas afinal confessa que quer ser padre. O escândalo sobe ao rosto do pai. O cristianismo já era, para Rohmer, e é ainda mais hoje, uma fronteira de subversão, com a ridícula ideia, quase pueril, de amar o inimigo como a nós mesmos. Não há mais subversão do que a vocação de padre ou freira.

Toda a subversão é pueril. Subversivos, por serem pueris, são filmes e livros onde se morra de paixão. É-o toda a arte que se entregue à ideia ingénua e esplêndida de que o espírito é que faz bom e apetecível – de tomai e comei! – o nosso corpo.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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