Saudade na portaria

Sardas desenhando o rosto claro, cabelos brancos presos em um coque antigo, a primeira moradora do prédio recém construído chega ao décimo e último andar – três quartos, sala, cozinha, área de serviço -, ajeita frutas, verduras, jornais, ajeita-se.

Chave na mão, agasalho leve sobre os ombros curvados, cachorrinho apertado junto ao peito, ela desce para a portaria que, desde o primeiro dia, adota como lar. Sai de lá pra almoçar, jantar, dormir e fazer visitas, atividade a que se dedica com afinco e afeto.

Quando nasce uma criança, – e elas nascem, o prédio parece atrair casais jovens – presente fabricado com cuidado, ela espera, encantada, que a nova família chegue da maternidade.

– Já não enxergo direito, não ficou bem feito, mas acho que o bebê vai gostar…

Os sapatinhos são tricotados sob o sol da portaria, entre beijos e abraços das crianças que brincam no playground e intermináveis conversas com os adolescentes que, pouco a pouco, entre correrias e jogos, descobrem, na simpática figura com o cachorrinho, uma avó em inteira disponibilidade.

À noite, em casa, os menores contam histórias vividas com a dupla – cachorrinho e avó – na portaria encantada.

As histórias dos mais crescidos falam deles mesmos, os primeiros sentimentos brotando na portaria misteriosa.

Com o tempo, algumas famílias se mudaram, as crianças viraram adolescentes, universitárias, o cachorrinho morreu.

Sardas cada vez mais apagadas, ombros cada vez mais curvados, ela diz, olhos molhados:

– Ele morreu na hora certa. Sinto saudade, mas foi na hora certa. Se preciso de duas bengalas para andar, como iria carregá-lo no colo?

Na última greve de ônibus, descansando no banco da portaria nostálgica, bengalas transformadas em brinquedos pelas crianças, ela indaga:

– Será que essa greve não vai acabar nunca? Tem três dias que o faxineiro não aparece…

– A senhora está precisando de alguma coisa?

– Não, meu amor, obrigada, quem tem noventa anos vai precisar de quê?

– É que a senhora falou no faxineiro…

– Estou com saudade dele.

28/4/1991

As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.

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