Não se procure nos filhos o que muito admirámos nos pais. Era o que eu devia ter pensado, quando o filho de Buñuel veio ilustrar o ciclo que dedicávamos ao pai recentemente morto. E seja como for, nem eu, nem ninguém pensou coisa nenhuma, de esgazeados que ficámos com a plenitude e a pele Channel de Carole Bouquet, a outra «ilustração» da retrospectiva em que meia Lisboa viu religiosamente os filmes do bispo do ateísmo chamado Buñuel.
Num artigo de 1959, rendido e hagiográfico, José Luis Aranda, conceituado crítico, atribuiu-lhe o papel de príncipe na orgulhosa revolução surrealista e ligou-o ao Partido Comunista. Traçou-lhe a genealogia: a mãe seria senhora nobre, oriunda de família riquíssima.
Buñuel mandou-lhe uma carta. Saiba a nação leitora do Expresso que, em 59, a carreira de Buñuel era a soma de uns gloriosos e escabrosos filmes vanguardistas com uma mão-cheia de filmes mexicanos pimba, fonte e espelho da minha idiossincrática candura sexual, que me faz contemplar as costas, ou lá o que é, da incontornável Lilia Prado a subir, de saia travada, a um autocarro em “Subida al Cielo” ou respirar fundo ao ver Katy Jurado a dar a carne à boca do bruto em “El Bruto” – convindo dizer que a expressão “dar a carne” não será talvez o que estão a pensar, porque em Buñuel nada é bem o que estamos a pensar.
E é isto com os filmes de Buñuel: já me distraio com o “conteúdo latente” deles, expressão luminosa que o João Bénard me ensinou. Voltemos à seriedade do crítico Aranda. Buñuel respondeu-lhe. Negou quase tudo, a começar por ser nobre e rica a senhora sua mãe. Com estrépito de quem mais nega mais mente, disse não ter sido o comunista que por uns anos foi e que nunca comera carne crua para imitar tribos primitivas.
Buñuel fizera um pungente documentário, “Las Hurdes”, sobre a miséria dessa região de Espanha nos anos 30. Nega a Aranda que fosse íntimo do padre da região e, pior, que fosse de um retiro espiritual uma foto em que estava contemplativo e místico. A foto era, dizia Buñuel, de um filme de Epstein, em que, figurante, o vestiram de monge. A essa prosaica negação juntou um toque florentino: “O que não percebo mesmo é o que quer dizer ao escrever que nos meus filmes emprego a música clássica como uma flagelação masoquista.” Pois sim, Don Luis!
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.