Existe um mundo em que, em uma floresta maravilhosa, por onde passeia um riacho que vai descansar em um lago onde cintilam estrelas, vivem os homens-livros. Lá estão Madame Bovary, Ulysses, Lolita, Dom Quixote, Peter Pan, Narizinho e todos – todos – os seus amigos. Eles passeiam, por toda a floresta, contando suas histórias. A floresta é uma enorme, interminável biblioteca que anda e fala.
Há outra singularidade naquele mundo. Lá, os bombeiros não apagam incêndios, eles os ateiam. Com livros, livros de verdade, não os humanos. Um de seus personagens é o Capitão dos bombeiros, o incrível agente do Grande Irmão. O Grande Irmão está em todas as casas, o dia todo, aconselhando e ditando o que as pessoas devem fazer. Ele se materializa na forma de uma enorme tela de televisão que, além de ser vista, também vê.
O Capitão tem um faro que lhe proporciona um talento especial: ele detecta livros. E é aí que os bombeiros desempenham sua missão: eles reúnem os livros, que naquele mundo são clandestinos, e os queimam. O Grande Irmão não gosta de livros porque não quer que ninguém se entregue a nada além de ver e ouvir aquilo que ele permite que vejam e ouçam.
Aquele mundo foi criado pelo escritor Ray Bradbury e transposto para o cinema pelo cineasta François Truffaut no filme Fahrenheit 451, que tem esse nome porque é nesta temperatura que os livros queimam.
Agora um Grande Irmão mais moderno se insinuou entre nós. Também se materializa em forma de tela, mas bem menor, para caber em nossas mãos. Ele se chama Kindle, mas também iPad, e breve receberá um outro nome, lançado pelo Google, que está correndo atrás. Ele não queima livros, apenas quer substituí-los. O Grande Irmão moderninho não quer que se construam mais bibliotecas físicas – ele tem uma biblioteca dentro dele, virtual. Não teremos mais, pelo menos ele não quer que tenhamos mais, um livro nas mãos, com sua capa, suas folhas, para que possamos tocá-lo, cheirá-lo, caminhar com ele para cima e para baixo, sentar com ele em um banco da praça, levá-lo pelos ônibus, pelo metrô.
O filme de Truffaut tem também um herói, Guy Montag. Montag era um bombeiro em vias de promoção por seu trabalho exemplar. Até que conhece Clarisse, uma linda jovem que tem um segredo: ela lê livros. Daí até Montag se tornar um dissidente é um passo. Ele passa a poupar, e a ler, alguns dos livros que deveria queimar. Logo se tornará um dos habitantes daquela floresta.
Os homens-livros decoram as obras depois que as lêem. Somem então com os livros, porque sabem o que os espera se forem descobertos com eles. Transformam-se então em livros vivos porque têm certeza de que em um dia qualquer no futuro, eles voltarão a ser permitidos, e então será o momento de escrevê-los novamente. E bibliotecas serão erguidas.
Tenho um amigo que é fanático por computadores e foi o primeiro jornalista brasileiro a trabalhar com um deles. Além do apartamento em que mora, mantém outro, e também uma casa, para abrigar os livros que compra ou recebe. Jamais dispôs de um livro sequer. Duvido que vá dedilhar um Kindle.
Estou com ele. Perto de minhas estantes Kindle nenhum se atreverá a chegar.
Postado em 15/4/2010.
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Um comentário para “O Kindle, o iPad e o Google”