Aldeia em fogo

zzzz manuel ford

Podemos recordar 1913 de muitas maneiras. Nesse ano, Apollinaire escreveu um ensaio, “Os Pintores Cubistas, Meditações Estéticas”, que logo nos diz em que alvoroço artístico andava a Europa. Freud publicou “Totem e Tabu”. Era um mundo antigo à procura de sensações novas.

Mas havia uma parvónia cheia de sol. O lugar era Hollywood, mundo novíssimo à procura de sensações antigas. Agarraram num velhíssimo material chamado riso e dor, amor e ódio, medo e coragem, reduziram o material a luz e sombras, muito branco, muito negro. Fecharam esse composto em fitas de nitrato, que meteram em latas. Chamaram-lhe “pictures”, chamamos-lhe agora filmes.

Era preciso muita gente para os fazer. Electricistas de barba rija, decoradores maneirinhos, actores debochados, actrizes que voltavam a ser virgens a cada nova manhã. E uma classe especial, os realizadores, artistas dos filmes. Em 1913, os realizadores usavam pingalim, monóculo queirosiano, e espetavam o nariz no ar como Cléopatra nunca espetou.

Se 1913 for recordado, é por ter sido o ano em que John Ford passou a realizador. Era um ignorado, mas bem pago assistente, caixa-de-óculos. Tentara ser actor, mas Griffith enfiou-lhe, em The Birth of a Nation, o branco capuz do Klu-Klux-Klan, que lhe fazia cair os óculos, e o mais certo é o cavalo dele ter saído fora do enquadramento.

Vejamos: houve uma festa VIP, no estúdio, à noite. Na manhã seguinte, o dono do estaminé quis mostrar aos convidados endinheirados como se filmava. De ressaca da bebedeira da noite, não havia um realizador. O patrão só tinha à mão John Ford e mandou-o filmar. Tímido, câmara pronta, Ford mandou avançar um cowboy a cavalo pelo cenário de uma aldeia do Oeste. A trote. Aplausos. Depois, como tinha quase 50 cowboys, mandou-os avançar todos. Mais aplausos. Aos gritos, mandou metade dos cavaleiros disparar e outra metade cair do cavalo. Foi o delírio.

O patrão exultava. Ford disse-lhe: “O cenário custa uns 215 dólares, posso destruí-lo?” Já ninguém lhe recusava nada. Ford mandou os 50 cavaleiros entrar aos tiros e pegar fogo ao cenário. À malta do dinheiro até os olhos brilhavam de ver uma aldeia arder. Ford gritava bem, ficou realizador. De Grapes of Wrath a The Searchers, fez algumas das mais admiráveis obras artísticas do seu século.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com.

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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