Em Repulsa ao Sexo, de 1965, o primeiro filme que dirigiu depois de deixar seu país, a Polônia, o cineasta Roman Polanski teve que fazer um intenso exercício para desglamourizar Catherine Deneuve, então na glória de seus vinte e poucos anos. Carol, o personagem, é uma louca varrida, uma esquizofrênica que vai se distanciando cada vez mais da realidade, aprisionada no universo à parte contido em seu pequeno apartamento, engolfada por um surto brabo.
Mais recentemente, em 1996, Sharon Stone passou por um ritual semelhante de desglamourização para viver, em A Última Chance, a mulher condenada à morte por ter assassinado, com extrema crueldade, um casal, quando era uma adolescente drogada. No auge da fama depois de ter, para o bem do bolso de muito cardiologista, cruzado e descruzado as pernas em Instinto Selvagem, Sharon Stone foi sem dúvida corajosa em se submeter ao trabalho furioso dos maquiadores para conseguir deixá-la com um rosto macilento, sem brilho, sem chama.
São dois exemplos radicais, exagerados, rasgados, para demonstrar que, em alguns casos, é preciso um trabalho danado para criar a falta de glamour. Da mesma maneira com que seria um trabalho imenso tentar criar glamour onde faltam as condições básicas para a existência dele.
Louisa Young que perdoe, mas glamour não é para todos, e não se aprende em nenhum tipo de escola.
Porque o glamour, afinal, é o resultado da combinação de um conjunto de atributos com os quais o Criador, ou a natureza, ou a vida não brindou a todos indistintamente; ao contrário, foi – ou foram todos – extremamente parcimonioso. Um conjunto de atributos. Beleza, é claro, dádiva rara, tão rara quanto a inteligência. Mais charme, elegância, sensualidade, esses dons difusos, complexos, multifacetados, difíceis de definir mas facilmente identificáveis, mesmo à distância. Mais uma pitada certa, exata, de luxo, de adorno, de complementos. Mais atmosfera, momento, inclinação, vontade.
Marilyn Monroe, enfim – se se quiser simplificar em uma única imagem.
Nunca Norma Jean, a garota pobre, problemática, carente, sequer bonita. Só a mulher mais madura, a partir da emblemática foto da folhinha, sobre o fortíssimo vermelho brilhante do fundo, que logo iria aí sim virar Marilyn, quanto mais exuberante melhor.
Até os dicionários, em geral tão sóbrios, sucintos, ao mesmo tempo se esparramam e se espantam para definir o termo. “Qualidade excitante e charmosa de algo não usual e especial, com um poder mágico de atração; atração pessoal forte que excita admiração, em especial beleza excitante sexualmente” – o Dictionary of English Language and Culture da Longman recorre a diversos adjetivos para tentar a definição certa do substantivo.
Na sua edição especial de 60º aniversário, a revista Life, que atravessou boa parte do século tentando incutir breves instantes de glamour na vida das famílias americanas, trouxe a histórica foto de Rita Hayworth em négligé, feita por Bob Landry em 1941, ao lado de um texto soberbo: “O glamour, que é muito diferente da beleza, é uma invenção moderna; não existia na arte antes do advento da fotografia. E fotos de pinups são a quintessência do glamour, uma espécie de propaganda em que beleza e celebridade se combinam para criar um ideal cujo apelo fundamental é uma promessa que jamais poderá ser cumprida.”
A própria expressão pinup é coisa recente; está lá no Aurélio como “representação da mulher e, eventualmente, do homem, em pose erótica, utilizada em impressos, como calendários, cartazes, etc”, mas o verbete omite a origem do termo, que não é nada glamourosa, embora tenha charme: pin é alfinete; pinup passou a ser o objeto que se pendura com alfinete no armário ou na parede, basicamente a foto da mulher bonita e famosa.
O mesmo texto da Life sobre Rita Hayworth, “a Mona Lisa das pinups”, dizia que a famosa foto “prometia a mesma experiência compartilhada para um número infinito de observadores”. E concluía: “Mas para cada um dos milhares de milhares de soldados americanos que carregaram essa imagem para a guerra, em bolsos e malas, em tanques e aviões, a foto era sua e apenas sua, um lembrete maravilhoso do motivo pelo qual ele estava lutando”.
O texto da Life de fato tem glamour. Se a gente pensar, no entanto, em foto pendurada no armário, soldado, adolescente, American Pie, borracharia, aí o glamour da quintessência do glamour vai para o brejo.
O glamour é coisa rara e pode virar pó com muita facilidade.
Na verdade, o glamour não é nada extremamente objetivo. Muito ao contrário. Um exemplo: entre tantas mulheres glamourosas que o cinema descobriu para expor ao mundo, a inglesa Deborah Kerr seguramente não estaria entre os primeiros 20 ou 30 nomes que viriam à cabeça dos mais fanáticos cinéfilos. Grande atriz, excepcional atriz, sem dúvida alguma, mas não propriamente um expoente de glamour. No entanto, é exatamente com ela a cena inesquecível, antológica, histórica, sensualíssima do beijo na praia de A um Passo da Eternidade – um dos grandes marcos do cinema de Hollywood rumo à quebra das regras da antes rigorosa censura.
No sentido inverso, tome-se o exemplo de Demi Moore, um dos maiores sex symbols dos anos 90, a mulher por quem o personagem de Robert Redford paga um milhão de dólares em Proposta Indecente, a estrela de Striptease, que mostra a barriga grávida em capa de revista (décadas depois de Leila Diniz) e tira a roupa até mesmo em programa de entrevista na TV, o Jô Soares deles. Há quem ache o máximo. Mas também há quem ache aquilo tudo um amontoado desagradável de cirurgias plásticas e muita malhação.
E são muitos os que insistem em descrever Grace Kelly como uma loura gelada. Ela, que não era fria nem como a quaker careta de Matar ou Morrer, e que fez até o impassível Cary Grant suar em Ladrão de Casaca ao perguntar: “Você quer peito ou coxa?”
E há também as que se confundem quanto à quantidade de adornos. Há uma dose certa; se passar dela, deixa chapado – como bebida, ou doce desandado. Marilyn era glamour puro de jeans e camisa branca de homem em Os Desajustados, seu último filme (ela não chegaria a terminar Something’s Got to Give, no qual aparecia saindo de uma piscina – é das filmagens dessa obra inacabada a foto que está na capa desta edição do maga.zine). Assim como a Liz Taylor dos anos 50, uma das mais extraordinariamente belas visões do século. Depois de Richard Burton e muita birita, no entanto, ela passou a exagerar nas cores e nos adereços; perdeu o glamour, chegou perto de virar brega. Quase como – de novo que Louisa Young perdoe – a Joan Collins dos últimos anos.
Até porque a verdade dos fatos é que a TV é um meio que sempre tenta ser glamourosa como o cinema, e volta e meia tudo o que consegue é tropeçar na breguice.
Para a imensa maioria dos mortais a quem não foi concedida a graça rara do glamour, pode, eventualmente, servir de consolo ou lição de vida a lembrança de que tudo isso – beleza, charme, elegância, sensualidade, luxo – às vezes não vale coisa alguma. Os pouquíssimos que têm tudo isso muitas vezes querem outras coisas.
Aquela mesma edição da Life trazia uma frase exemplar de Rita, a mulher aquinhoada pela fortuna com uma quantidade everestiana de glamour:
“Sou uma atriz. Tenho profundidade. Tenho sentimentos. Mas eles não ligam. Tudo o que eles querem é uma imagem.”
Marilyn, todos sabemos, é a eterna lembrança disso.
A historinha por trás do texto
O texto acima foi publicado em agosto de 2000, no portal estadao.com.br.
Em 2000, o portal estadao.com.br tinha uma revista semanal, com textos sobre cinema, música, moda, comportamento, assuntos culturais em geral – uma coisa amena, distante do noticiário do dia-a-dia, das hard news. O portal na época era editado pela Agência Estado, onde eu trabalhava. A revista, que ia ao ar nos fins de semana, chamava-se maga.zine, e era editada por Lúcia Carneiro, que cuidava com talento e paciência tanto dos textos quanto da diagramação, do design. Algumas vezes ela me encomendou uns textinhos.
Uma das matérias que ela editou era sobre um livro, ou um artigo, já não me lembro mais, de uma tal de Louisa Young, a respeito de glamour. A tese da moça era de que todo mundo pode ter glamour. E a Lúcia me encomendou um texto auxiliar, secundário, para sair junto com a matéria sobre o livro ou o artigo de Louisa Young. O resultado foi o texto que está aí acima.
Lúcia Carneiro publicou várias belas reportagens, muitíssimo bem diagramadas e ilustradas, no mega.zine do estadao.com.br. Todo o trabalho dela, me parece, se perdeu. Por alguma incompetência do povo da técnica, da informática, do Grupo Estado, grande parte do que se produziu no portal simplesmente desapareceu da internet, segundo me contou, chocado, Edmundo Leite, um jornalista de grande talento, que trabalha no portal do Estadão praticamente desde que ele existe.
Coisa de louco – como é possível tanta incompetência?
São Paulo, abril de 2010