O beijo que Maureen O’Hara e John Wayne deram em The Quiet Man é o arquétipo de todos os beijos. Os do cinema e os que na vida mais se parecem aos do cinema.
Se não o viram, ouçam-no. Há na Irlanda uma tempestade homérica, relâmpagos a despedaçar a escuridão e um homem, o americano e retornado Sean Thornton, entra na casa, que uma lareira aquece. Vassoura no chão, cinzas varridas ao lado, denunciam presença intrusa. Um daqueles ventos nocturnos, que só um grande filme romântico pode dar-nos, faz bater estrondosamente as portas. A intrusa, Mary Kate, blusa azul, saia vermelha, esconde-se para proteger o que talvez (e este “talvez” só aqui está por honra da firma) muito quer dar. Sean, a que o realizador, John Ford, emprestou o corpo de John Wayne, solta um grito de guerra e, à pedrada, parte um vidro para fazer sair da toca quem, escondendo-se, ele sabe que, de muito se esconder, deveras se quer mostrar. O vidro estilhaça-se e faz saltar a mulher, que o reflexo de um espelho nos dá a ver a nós e a assusta a ela. Tenta fugir. Quase conseguia, não fosse o rápido braço direito do homem a puxá-la para dentro num movimento redondo, quase um passo de valsa, atraindo a si o indomável corpo e a ruiva cabeleira da fogosa irlandesa que daria pelo nome de Mary Kate, se não soubéssemos que é Maureen O’Hara. E beijam-se.
Beija-a ele a ela, mas bem vemos que o beijo que o vento, a chuva, o tormentoso Inverno tão romanticamente sublinham, já ela o desenhava desde o princípio do filme. É o que John Wayne, depois de Maureen O’Hara o esbofetear pelo atrevimento, lhe diz, que há obsessões de que um homem não se livra com facilidade, como a visão de uma mulher caminhando pelo campo com o sol a bater-lhe no cabelo ou a ajoelhar-se na igreja, o rosto como o de uma santa.
É esse o beijo de Innisfree. Deram-no John Wayne e Maureen O’Hara, num dos melhores filmes deles e de John Ford. Evoco o filme e o beijo — que Spielberg evocou também com graciosidade e humor no “E.T.”. E amanhã, se eu fosse de ir à igreja como ia John Wayne para a ver, ajoelhar-me-ia à espera que me aparecesse o “rosto de uma santa”, Maureen O’Hara, actriz irlandesa e fordiana, que de santa, Deus a abençoe, nada tinha. “Saint indeed.”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Quiet Man no Brasil é Depois do Vendaval.