Democracia de resultados

Democracia não tem dono, embora muitos se arvorem em tutelá-la. Não permite ser ditada por mandatários políticos ou econômicos. Muito menos tem espaço para ser transformada em democracia de resultados, de conveniência, como preconiza o grupo de advogados que assinou a “Carta aberta em repúdio ao regime de superação episódica de direitos e garantias verificado na Operação Lava Jato”, publicada na sexta-feira nos principais jornais do país.

Nada contra o direito de gritar, espernear, esbravejar, algo que só a liberdade de expressão garantida pelos regimes democráticos permite. Mas seria melhor fazê-lo sem banalizar o conceito de democracia, tão surrado no Brasil nestes tempos de domínio do lulopetismo, em que o governo se considera titular exclusivo dessa doutrina. E que agora tem de partilhar com os causídicos que defendem réus e investigados da operação Lava Jato, responsável por desbaratar a roubalheira desvairada que assolou a Petrobras.

A carta é um primor.

Do título extenso e nada convidativo, que denuncia a “superação episódica”, ao juridiquês, que transmuta descaso ou menosprezo em “menoscabo”, e salubridade em “higidez”, tudo nela é hiperbólico, ou melhor, exacerbado, exageradíssimo. A ponto de perder a razão até nos momentos em que poderia tê-la.

Para os signatários – 103, sendo que pelo menos um deles, o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Gipp, negou ter autorizado o uso de seu nome –, a Lava Jato não apenas viola “as prerrogativas da advocacia”, dentre “outros vícios” não explicitados, como imputará “consequências nefastas para o presente e o futuro da justiça criminal brasileira”.

Ora, se é assim tão grave, e se a Lava Jato fere de morte a Constituição, como afirmam, por que a tese não foi levada ao Supremo? Por que só reclamam agora depois de perder sucessivos (não confundir com periódicos) recursos em nome de seus clientes na mais alta Corte do país?

A certa altura, depois de criticar sem nominar a reportagem da revista Veja que traz o dia a dia de detentos nobres no presídio, a carta traça o cenário da conspiração perfeita: “estratégia de massacre midiático”, parte de um “verdadeiro plano de comunicação para incutir na coletividade a crença de que os acusados são culpados, mesmo antes deles (sic) serem julgados”.

E, pasmem-se, capaz de “pressionar instâncias do Poder Judiciário a manter injustas e desnecessárias medidas restritivas de direitos e prisões provisórias”. Nessa frase acusam diretamente – sem meias palavras – os juízes de tribunais superiores de serem suscetíveis à mídia e julgarem com parcialidade. Contra os clientes dos signatários, é claro.

Assim como o governo Dilma Rousseff e o PT, rechaçam com veemência o que chamam de “vazamento seletivo”, como se seus ricos fregueses tivessem foro privilegiado e depoimentos policiais protegidos.

Nem de longe mencionam que o Supremo manteve as prisões provisórias com base em fartura de provas e na possibilidade de os acusados, se libertados, manipulá-las.

Desafiam o STF e afirmam que a continuidade das prisões é instrumento de coerção para obter delação premiada. Os mesmos presos que representam “gravíssimo risco a ordem pública”, dizem, não oferecem ameaça alguma quando se tornam delatores. Omitem o fato de que, ao contrário dos demais detentos, delatores querem preservar as provas de seus dizeres, sob pena de perderem as vantagens negociadas, em vez de eliminá-las ou tentar alterá-las para driblar a Justiça.

Novamente com o cuidado de não citar nomes e até para evitar ser alvo de eventuais processos, imputam parcialidade ao juiz Sérgio Moro, que estaria se comportando “de maneira mais acusadora do que a própria acusação”.

Por fim, evocam a ameaça ao Estado de Direito e voltam a duvidar da capacidade do Poder Judiciário, que estaria sujeito a ser influenciado pela “publicidade opressiva que tem sido lançada em desfavor dos acusados”. Pura peça de defesa, aqui sem qualquer disfarce.

Mas nada é mais acintoso do que o uso indevido e oportunista do sentido da democracia. Muito mais do que uma “Justiça que se pretenda democrática”, como o documento defende, o país precisa de uma Justiça justa. Que não privilegie ninguém. Isso, sim, é democracia e o mérito maior da Lava Jato.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/1/2015. 

4 Comentários para “Democracia de resultados”

  1. Que não privilegie ninguém. Isso, sim, é democracia e o mérito maior da Lava Jato.

  2. Os signatários – 103, da “Carta aberta em repúdio ao regime de superação episódica de direitos e garantias verificado na Operação Lava Jato”,

    Alexandre Aroeira Salles
    Alexandre Lopes
    Alexandre Wunderlich
    Alvaro Roberto Antanavicius Fernandes
    André de Luizi Correia
    André Karam Trindade
    André Machado Maya
    Antonio Carlos de Almeida Castro
    Antonio Claudio Mariz de Oliveira
    Antonio Pedro Melchior
    Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo
    Antonio Tovo
    Antonio Vieira
    Ary Bergher
    Augusto de Arruda Botelho
    Augusto Jobim do Amaral
    Aury Lopes Jr.
    Bartira Macedo de Miranda Santos
    Bruno Aurélio
    Camila Vargas do Amaral
    Camile Eltz de Lima
    Celso Antônio Bandeira de Mello
    Cezar Roberto Bitencourt
    Cleber Lopes de Oliveira
    Daniela Portugal
    David Rechuslki
    Denis Sampaio
    Djefferson Amadeus
    Dora Cavalcanti
    Eduardo Carnelós
    Eduardo de Moraes
    Eduardo Sanz
    Edward de Carvalho
    Felipe Martins Pinto
    Fernando da Costa Tourinho Neto
    Fernando Santana
    Flavia Rahal
    Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto
    Francisco Ortigão
    Gabriela Zancaner
    Guilherme Henrique Magaldi Netto
    Guilherme San Juan
    Guilherme Ziliani Carnelós
    Gustavo Alberine Pereira
    Gustavo Badaró
    Hortênsia M. V. Medina
    Ilídio Moura
    Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
    Jader Marques
    João Geraldo Piquet Carneiro
    José Carlos Porciúncula
    Julia Sandroni
    Kleber Luiz Zanchim
    Lenio Luiz Streck
    Leonardo Avelar Guimarães
    Leonardo Canabrava Turra
    Leonardo Vilela
    Leticia Lins e Silva
    Liliane de Carvalho Gabriel
    Lourival Vieira
    Luiz Carlos Bettiol
    Luiz Guilherme Arcaro Conci
    Luiz Herique Merlin
    Luiz Tarcisio T. Ferreira
    Maira Salomi
    Marcelo Turbay Freiria
    Marco Aurélio Nunes da Silveira
    Marcos Ebehardt
    Marcos Paulo Veríssimo
    Mariana Madera
    Marina Cerqueira
    Maurício Dieter
    Maurício Portugal Ribeiro
    Mauricio Zockun
    Miguel Tedesco Wedy
    Nabor Bulhões
    Nélio Machado
    Nestor Eduardo Araruna Santiago
    Nilson Naves
    Paulo Emílio Catta Preta
    Pedro Estevam Serrano
    Pedro Ivo Velloso
    Pedro Machado de Almeida Castro
    Rafael Nunes da Silveira
    Rafael Tucherman
    Rafael Valim
    Raphael Mattos
    Renato de Moraes
    Roberta Cristina Ribeiro de Castro Queiroz
    Roberto Garcia
    Roberto Podval
    Roberto Telhada
    Rogerio Maia Garcia
    Salah H. Khaled Jr.
    Sergio Ferraz
    Técio Lins e Silva
    Thiago M. Minagé
    Thiago Neuwert
    Tiago Lins e Silva
    Ticiano Figueiredo
    Tito Amaral de Andrade
    Victoria de Sulocki
    Weida Zancaner

  3. A falsificação da realidade, a eliminação do contraditório e a estigmatização de adversários são práticas totalitárias que adubam o terreno do ódio e da intolerância, e que abrem caminho para a fascistização da sociedade.

    A corrupção do PSDB, assim como toda a corrupção descoberta, independentemente da autoria, não pode ser abafada [ler aqui], como faz o condomínio policial-jurídico-midiático de oposição.

  4. A corrupção do PSDB, assim como toda a corrupção descoberta, independentemente da autoria, não pode ser abafada, como faz o condomínio policial-jurídico-midiático de oposição.

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