Era menino demais da conta quando a música que escreveu com o amigão Bituca foi a segunda colocada na final da parte brasileira do II FIC, Festival Internacional da Canção. Tinha só 20 anos quando o Maracanãzinho inteiro o aplaudiu e a Bituca, em setembro de 1967 – ele só faria 21 no mês seguinte.
Elis Regina, no auge do auge, tida por 9 entre 10 críticos de música como a melhor cantora do país, gravou as palavras que ele escreveu, e foi um sucesso absurdo. E não foi apenas “Travessia” – virou useira e vezeira em gravar Milton Nascimento-Fernando Brant.
Uma coisa dessa dimensão pode fazer pirar a cabeça de um garoto.
Ginásios inteiros cantaram a plenos pulmões as palavras que ele havia juntado. Praças inteiras.
Fernando Brant era uma pessoa absolutamente, resolutamente, tranquilamente simples.
Em Minas, quando éramos meninos mais ou menos da mesma idade (ele era três anos e pouquinho mais velho que eu), havia várias palavras para designar nego metido. Metido era a principal, mas havia também convencido, fresco, empombado, presunçoso, pretensioso, emproado.
Fernando era exatamente o oposto de cada um desses adjetivos.
Essa qualidade dele, que tive a honra de conhecer de perto, ainda que umas poucas, raras vezes, é tão bela quanto seus versos.
Um outro grande letrista da MPB, da mesma geração que nós, Renato Teixeira, costumava insistir muito no elogio à simplicidade, às coisas simples.
Fernando era a simplicidade em pessoa. Era uma pessoa límpida, cristalina – como os versos que escrevia.
E aí é que está: para quem não é do ramo, pode parecer que escrever de maneira límpida, cristalina, simples, é fácil. Redondo engano. Não é, não. É preciso ser ourives competente para atingir esse patamar tão alto quanto as montanhas de Minas.
***
Saber que Fernando morreu foi um choque absurdo. Senti uma dor forte como se ele fosse um amigo íntimo. Como assim, como assim, tão moço? Tão de repente?
Fiquei sem palavras durante muitas horas – eu, que me sustentei a vida inteira por saber juntar palavras.
Queria que Mary não estivesse tão longe. Gostaria de estar perto dela nesta hora. Os dois eram muito amigos, desde os tempos em que trabalharam juntos na Rádio Inconfidência, no início dos anos 80, Tancredo Neves governador, ele como diretor musical – implantando o projeto da Brasileiríssima, a primeira rádio a só tocar música brasileira, 24 horas dia –, ela já brilhando no jornalismo. Foi por causa da amiga, para agradar à amiga, que Fernando apoiou este site, ao qual emprestou seu nome e suas palavras a partir de dezembro de 2009, permitindo que eu republicasse aqui as crônicas que escrevia para as edições de domingo do Estado de Minas.
***
Foi um ótimo cronista. Falava com o leitor do jornal como se estivesse fazendo aquilo de que mais gostava na vida: conversar com os amigos tomando cerveja. (Aliás, tanto no amor quanto no álcool era um monogâmico: foi sempre fiel a Leise e à cerveja.)
Reuniu dezenas e dezenas delas em Casa Aberta, que publicou em 2001, pelas Edições Dubolsinho. Uma edição bem cuidadíssima, em que as crônicas foram divididas por temas em grandes grupos: Travessia, Sou de Minas, Sou do Mundo, Coração Civil, Saídas e Bandeiras, Encontros & Despedidas.
Foi um batalhador pelos direitos autorais, dos mais ferrenhos de todo o pessoal da música brasileira. Tinha horror aos populismos tipo Creative Commons que Gilberto Gil adotou, por exemplo, em sua passagem pelo Ministério da Cultura, que, na visão de Fernando, e de qualquer pessoa de boa visão, prejudicavam os autores.
Nos últimos anos, demonstrou em suas crônicas um nojo crescente pelos males que os governos do PT vêm fazendo ao país.
Mas é claro que Fernando que será sempre lembrado em primeiro lugar por suas letras de música, em especial as feitas para as melodias de seu amigo desde antes dos 20 anos de idade, o Bituca.
São dezenas e dezenas e dezenas, e nelas há muito do que melhor se fez na música popular brasileira neste último meio século.
“Mande notícias do mundo de lá, diz quem fica. Me dê um abraço, venha me apertar, estou chegando.”
“Morte, vela, sentinela sou do corpo desse meu irmão que já se vai.”
“Revejo nessa hora tudo que aprendi, memória não morrerá. Longe, longe, ouço essa voz Que o tempo não vai levar.”
“Amigo é coisa para se guardar Debaixo de sete chaves Dentro do coração”
“Mas é preciso ter manha É preciso ter graça É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida”.
“Tenha fé no nosso povo que ele resiste. Tenha fé no nosso povo que ele insiste E acorda novo forte alegre cheio de paixão.”
“Itamarandiba, pedra corrida, pedra miúda rolando sem vida. Como é miúda e quase sem brilho a vida do povo que mora no vale.”
“E assim chegar e partir São só dois lados Da mesma viagem O trem que chega É o mesmo trem da partida A hora do encontro
É também de despedida A plataforma dessa estação É a vida desse meu lugar.”
“O amor bateu na porta, Eu de dentro respondi Minha casa é aberta, Pode entrar, estou aqui.”
E há os versos para outros parceiros, Tavinho Moura, Beto Guedes, Toninho Horta, tudo gente da mesma turma, tudo gente fina:
“O medo de amar é não arriscar Esperando que façam por nós o que nosso dever.”
“Eu sou da América do Sul, Eu sei, vocês não vão saber Mas agora sou cowboy, Sou do ouro, eu sou vocês, Sou do mundo, sou Minas Gerais.”
“Poesia é meu pão E a vida meu juiz. Meu destino eu mesmo é que fiz.”
Nossa mãe do céu! É muita beleza.
Que os anjos te recebam bem, Fernando.
13 de junho de 2015
Um P.S. : A grande escritora Ana Maria Machado fez uma bela homenagem ao Fernando, em artigo publico em O Globo em 27/6/2015. Eis aí:
Além das qualidades de seu lirismo, reconhecido por todos, celebro quem talvez tenha sido o mais preparado e corajoso defensor dos direitos autorais entre os artistas brasileiros. Formado em Direito, tinha embasamento jurídico para liderar essa luta dura e jamais fugia dela. Mas seu perfil discreto lhe sugeria não se colocar sob os holofotes, e preferir ficar municiando os outros com dados e argumentos. Fomos parceiros em várias batalhas nessa área. A certeza de poder contar sempre com ele era uma tranquilidade. O último editorial que publicou na revista da União Brasileira de Compositores, que presidia, fica como legado e conselho: “O autor é o princípio de tudo o que se refere à cultura. Sem ele não haveria a beleza da música, da poesia, da arte. Oxigênio da vida humana, impulsiona, ao mesmo tempo, as engrenagens de um mercado infinito. Defender os direitos dos autores é uma tarefa que parece não ter fim. Os adversários do respeito aos criadores inventam, a todo momento, armadilhas e estratégias para nos desrespeitar. A UBC e todos os compositores, músicos e intérpretes que a sustentam estão atentos para que nossos direitos prevaleçam sobre os interesses comerciais escusos.”
A criação brasileira fica mais desamparada sem Fernando Brant.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em novembro de 2013 e compilada aqui em 50anos.
O livrinho e o Supremo
:: Ao autor pertence o direito exclusivo de utilizar a sua obra. Por Fernando Brant
Primeiro eu digo que sou filho de Juiz de Direito e aprendi, desde menino, a valorizar esse tipo de gente que se dedica a resolver conflitos e aplicar, com conhecimento e sensatez, a Justiça. Mais que a lei, a Justiça, pois a legislação que foge do bom direito não deve prosperar, tem de ser revogada.
Claro que existem maus juízes, mas isso não justifica descrença no Judiciário, que é formado por humanos. O magistrado que não merece respeito deve ser defenestrado da mesma forma que os códigos ilegítimos.
Gostei de ler, outro dia, um texto da escritora Ana Maria Machado, presidente da Academia Brasileira de Letras. Do mesmo jeito dela, eu não sou jurista mas sempre leio o livrinho. Aprendemos isso com nossos pais. O livrinho, como todos deveriam saber, é a Constituição, bíblia e bússola de todo cidadão brasileiro.
Sofremos mais de vinte anos, massacrados pelo autoritarismo, praga que se espalha por qualquer país, cidade, rua e praça dominados por qualquer tipo de ditadura. Desde os dezesseis anos, até quase os quarenta, tive que suportar, resistindo, o peso da ignorância, da estupidez. Lembro-me de meu pai expulsando de sua sala de trabalho um indivíduo que, desejando uma decisão, insinuando pressioná-lo, afirmou ser amigo de militares. A Justiça não deve nem pode se render à força.
Pois o nosso livrinho, roteiro da cidadania, é notável principalmente em seu quinto artigo, que trata exaustivamente, dos direitos e garantias individuais. Trago-o sempre a meu lado, seguindo o conselho do Comandante da Democracia, Ulysses Guimarães. E me assusta perceber que governantes, legisladores e muita gente reconhecida como defensora das boas causas ignoram, tentam atropelar ou admitem pequenas exceções no cumprimento dos mandamentos constitucionais.
Fico de cabelo em pé, berro e grito contra esses absurdos.
Em seu artigo quinto, nossa Constituição reservou lugar especial para alguns princípios fundamentais, protegendo-os de qualquer interferência ou modificação. São as chamadas cláusulas pétreas. Não podem ser nem objeto de deliberação. Artigos imexíveis, como diria o Magri.
Na minha vida de compositor me fixo sempre em duas dessas cláusulas que, além de respeitadas, não podem ser modificadas.
Uma diz que ao autor pertence o direito exclusivo de utilizar a sua obra. Quer dizer: qualquer utilização necessita de sua autorização. A outra diz expressamente que a criação de associações é livre, sendo “ vedada a intervenção estatal em seu funcionamento.”
Irresponsavelmente, o Congresso,o Executivo e alguns artistas que andam por aí procurando alguma coisa, os procuristas, aprovaram uma lei que é um tapa em nossa cara e em nossos direitos.
Estamos com ação no STF para que o barco legal volte ao caminho justo.
VOCE VENCEU FERNANDO! por unanimidade no STF.
…-Sérgio, seu belo texto me despertou para fatos que, grande admirador do Milton e do Clube da Esquina, mas desatento, não havia assimilado. Ouvia Milton, maravilha, sem me dar conta de quem, entre os do clube, havia escrito cada maravilha. Agora sei quem escreveu o quê.
Sua apresentação das frases foi perfeita, a gente lia e ouvia a música. Mais não digo, estou de saída para o YouTube.
…-Miltinho, grande a descoberta do texto em que Brant se posiciona sobre os direitos autorais. Os jornalões comeram mosca nisso.
Milton contou, no ano passado, em entrevista ao Chico Pinheiro, como começou a parceria com Brandt. Ele tinha uma melodia que pretendia inscrever no II FIC. Mas ainda não tinha a letra e o prazo era pequeno. Tentou diversas vezes convencer Brandt a fazer a letra, mas ele se recusava terminante. Era jornalista, não compositor. Nunca tinha feito uma letra de música. De tanto insistir, Brandt, hesitante, escreveu a sua primeira letra de música na vida, meio que por obrigação, para se livrar do problema. Escreveu simplesmente a letra de Travessia.
E eu sou uma pessoa de tanta sorte, Luiz Carlos, que o autor de “Travessia” – e de tantas outras maravilhosas canções – topou ser parte deste site aqui.
Acho que, modéstia à parte, este site atrai pessoas de bom caráter.
Um abraço.
Sérgio
Sérgio, é incrível saber que frases como estas citadas por você, dentre centenas outras insculpidas nas canções feitas em parcerias com Milton e outros, fizeram a cabeça de tantos nos últimos 40 e tantos anos. A ligação mais visceral de Brandt com povo alagoano, como eu, eternizou-se nos versos de Menestrel das Alagoas, canção feita em homenagen a Teotônio Vilela. O registro feito no comentário do amigo Luiz Carlos não demonstra o acaso, mas a genialidade latente em Brandt.