Deu-me para isto, mas não é todos os dias que nos morrem Herbertos e Manoéis. Eram tão diferentes que me apeteceu juntá-los.
Haverá um arbusto de sangue nas jovens mulheres dos filmes de Manoel de Oliveira? O arbusto fui buscá-lo a um verso de Herberto que o meu pelotão da Escola de Aplicação Militar de Angola ia murmurando nos 30 quilómetros de mato das marchas finais: “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela encantarei a noite.”
Quem assim gritava era o baixo-ventre de cadetes aspirantes a oficiais do exército português. A tropa, e não era mau, dava-nos “uma folha viva de erva”, sem os beijáveis ombros de mulher incriada que essa folha tinha no verso seguinte de Herberto.
Não conheço carreira militar ao Manoel. Mas há sangue nas suas mulheres. Beijos nos ombros, talvez menos. Uma coisa é certa: há um rumor de baixo-ventre a atravessar-lhe os filmes. Na estreia de Os Canibais, há quase 27 anos, ele com 80 e eu 35, tivemos dois dias de conversas muito civis no apartamento do Porto onde morava. Enchemos o apartamento de virgens. Acusei Oliveira de um quase fetiche: “Porque é que as suas heroínas são sempre virgens?” Ele não me desmentiu, porém chutou o fetiche para canto, pedindo desculpa com a natureza: “Limito-me a verificar a marca que a natureza imprime.”
E a conversa descambou para hímenes e heróis atormentados e impotentes, Oliveira a dizer-me como o sexo era rasteiro, feito com os mesmos órgãos de outros actos tão pouco nobres, a consumação a desaguar na morte. Sexo logo morte, e deu-me exemplos de bichos e plantas que, pelo bem maior da reprodução, se entregam ao acto, sabendo que a consequência dele é a irreparável imolação.
Se cheguei aqui foi para me convencer a mim mesmo do contrário do que sempre pensei: talvez Oliveira pudesse, afinal, ter filmado os versos ou os contos de Herberto. Na Francisca, o coração na mão de José Augusto faz-me pensar no coração que D. Pedro trinca ferozmente em Teorema, um conto de Os Passos em Volta. O desmembrado corpo do Visconde em Os Canibais, o festim de horror em que é comido, pode, paródico, aproximar-se da abertura das Servidões, do porco selvagem estendido na mesa da cozinha, que logo o poema e o poeta retalham a cutelos e facalhões. Em ambos, um odor a sangue e barbárie, inferno em que, humanos, nos reconhecemos. Mas há um verso de Herberto que não sei como Oliveira filmaria: “meu amor, o inferno é o teu corpo foda a foda alcançado.” Ou, sequer, se o filmaria.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.