Uma cadeira no meio das pernas

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Claro que a car­reira de Mar­lene Die­trich tinha per­nas para andar. Foi com uma cadeira no meio des­sas per­nas que Josef von Stern­berg lhe cons­truiu a ima­gem. Quem viu, dizia: “Ah, aque­las per­nas.” Eram sus­pi­ros de 1930. Começava-se a sus­pi­rar na Ale­ma­nha e con­ti­nu­ava a suspirar-se pelos Esta­dos Uni­dos da Amé­rica dentro.

Ele­ve­mos um boca­di­nho a con­versa: Mar­lene tinha rosto e tinha olhos. Mais ainda: tinha uma voz rouca, que negava as leis da gra­vi­dade. Nos seus fil­mes, quando ela falava, o que devia natu­ral­mente pen­der em direc­ção à terra levantava-se a dar gra­ças aos céus.

Um dia, coin­ci­diu num avião com o rea­li­za­dor Peter Bog­da­no­vich e o actor Ryan O’Neal. Achou-lhes graça: afi­nal, sabiam na ponta da lín­gua os fil­mes dela. Para con­ver­sa­rem melhor, Mar­lene pôs-se de joe­lhos no banco da frente, debru­çada para eles. Fosse por a ver de joe­lhos, O’Neal rezou-lhe: “Miss Die­trich, tem umas belas per­nas.” “Oh, se tenho – disse ela, dando sono­ras pal­ma­das numa delas – umas coxas fan­tás­ti­cas.” O’Neal, entu­si­as­mado, desem­bes­tou: “Quando era jovem, sonhava com as suas per­nas e acor­dava a gemer.” “Tam­bém eu, meu filho, tam­bém eu”, animou-o ela, nostálgica.

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Um con­certo de gemi­dos garante o lugar de Mar­lene Die­trich na his­tó­ria do cinema. E se as per­nas de Die­trich aco­lhe­ram gemi­dos apai­xo­na­dos: “Pouco me inte­res­sava se eram homens ou mulhe­res, desde que fos­sem belos”, con­firma ela.

Mas Mar­lene tem uma hie­rar­quia amo­rosa. Em pri­meiro lugar, Stern­berg, o seu Deus Nosso Senhor, que a cons­truiu e nela se des­truiu, cum­prindo o pre­mo­ni­tó­rio pri­meiro filme que os uniu, O Anjo Azul. Pode dizer-se que Mar­lene o enga­nou com tudo o que mexia. Ela era assim, fiel à infi­de­li­dade, flor aberta a zan­gões ou abelhas-rainhas. Em segundo lugar, se calhar acima de tudo, amou o cheiro a classe ope­rá­ria do fran­cês Jean Gabin. Aca­bara de enviu­var de um casa­mento de alguma con­ve­ni­ên­cia, quando Gabin mor­reu. Soube e disse: “Sou a única mulher no mundo que enviu­vou duas vezes ao mesmo tempo.”

Pelas per­nas viveu, pelas per­nas mor­reu. Can­tava ao vivo, em Sid­ney, e caiu no fosso de orques­tra. Par­tiu as per­nas, que pas­sa­ram a ser de cirur­giões e cirur­gias. Desis­tiu. Deitou-se onze anos, em Paris, na cama do seu apar­ta­mento. As per­nas muito sos­se­ga­di­nhas, até morrer.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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