Quando a conheci, já ela morrera há sessenta anos. Conheci a Bonnie que Clyde amou, em 1994, na mansão de um big shot do cinema, em Beverly Hills. Sábado e sol de Maio, duas bandas de jazz, vastos relvados, as mesas sob toldos protectores. Podia ser a festa do crisma do filho de Michael Corleone, no Godfather part II.
Bonnie morreu em 1934, no dia em que morreu Clyde, vejam a coincidência. Para mim, ela terá sempre 24 anos, e agora que estávamos ali, de olhos nos olhos, era aos 24 anos dela que eu falava.
Se não estou a mentir, e talvez não esteja, estou pelo menos a confundir. Talvez ela fosse a Faye Dunaway, e nos seus 53 anos eu tenha visto os 24 de Bonnie. Faye Dunaway, a misteriosa actriz de Thomas Crown Affair e do superlativo Chinatown, há-de sempre ser a Bonnie do nervoso, pós-romântico Bonnie and Clyde, de Arthur Penn.
Na mansão de Beverly Hills, eu perguntava a Bonnie pelos assaltos no Texas, Missouri, Lousiana, e Faye respondia-me com a casa que tinha no Algarve. Eu a querer sangue, perigo, um tiro à queima-roupa, e ela “as minhas férias portuguesas”.
Bonnie era a melhor aluna do liceu, quase tão bonita como Faye Dunaway. Escrevia poemas atormentados pela sombra da morte, pela solidão que o casamento aos 16 anos não dissipou, pela inocência do juvenil anel de noivado que conservou mesmo depois de andar com Clyde. Mas o que ela queria era fazer cinema.
A polícia cercou Bonnie e Clyde, em Joplin, Missouri. O par escapou, matando e ferindo sem piedade. Os polícias descobriram rolos de filmes com Bonnie. O talento era evidente. Publicaram-se imagens e os jornais e a América renderam-se a uma iconografia subversiva, pré-cheguevarista.
Como no fundo desejavam, a polícia emboscou-os e abateu-os. Mais de 130 tiros que deixaram o carro num passador e os corpos deles com perto de 50 buracos incapazes de conter a fama que já conquistara a nação americana.
Vinte mil pessoas assistiram ao funeral de Bonnie, em Dallas. A conversar com os 53 anos de Faye, vi neles o alívio que nesse dia terão sentido os 24 jovens anos de Bonnie. Cúmplice de assaltos, de raptos infames e de assassínios cobardes, é provável que só sonhasse ser a actriz que foi nas fotografias de Joplin. Talvez a mão dela nunca tenha disparado um tiro. E agora me lembro de ver uma ligeira tremura na mão magra de Faye Dunaway.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.