Se eu já estivesse vivo e me tivessem convidado, daria logo, de caras, com Katharine Hepburn e Igor Stravinsky em amena cavaqueira na sala.
Estou a falar da casa de George Cukor, mas bem podia ser outra qualquer, em Hollywood. À dele vinham os Goldwyn, tão chapada e platónica era a paixão que o realizador tinha pela mulher do produtor e ela por ele, lado para o qual Sam Goldwyn melhor dormia, sabido que Cukor, quando era para dormir, se inclinava de outra maneira.
Deixemos os quartos e voltemos à sala. Somerset Maugham está a ouvir Edith Stilwell, o belo Gregory Peck é o ai-jesus da conversa dos Barrymore e Judy Garland. Laurence Olivier mantém a pose shakespeariana e Groucho Marx tenta interromper o enleio de Stravinsky e Hepburn. À falta de melhor, pega fogo à toalha da mesa. Juro-vos que é verdade, que eu, praticamente, estive lá.
Havia, nesses anos 30 a virar para os 40, uma aristocracia em Hollywood. Se alguém, como agora, dissesse bitch ou motherfucker, haveria desmaios na sala. Cairia pelo menos o Braque ou o Matisse que Cukor pendurara na parede. Ali perto, vizinhos de Stravinsky, viviam Thomas Mann, Brecht, Aldous Huxley, Max Rheinhardt, Alma Mahler. Ah pois, a alma da Europa mudara-se para Beverly Hills.
Stravinsky viera para que o calor da Califórnia desse sossego à tuberculose da mulher. Sejamos francos, o calor dos dólares também contou. Em Paris, Walt Disney dissera-lhe que ia usar a Sagração da Primavera num filme de animação, o Fantasia. E, pegar ou largar, meteu-lhe seis mil dólares na mão. Era isso ou zero que, na América, Stravinsky não tinha copyright da obra.
O que Stravinsky não adivinhava era que nunca mais se ouviria uma nota sua num filme. Ainda compôs uma pequena maravilha para outro filme, a Song of Bernardette. A aparição de Nossa Senhora, embalada a Stravinsky, ficou numa linha Bento XVI, mas já então os produtores de Hollywood eram mais Papa Francisco. Recusaram.
Na sala de Cukor, Katharine está a perguntar a Igor se já ouviu os pássaros-lira cujo canto a fascinou. Foi à Austrália, responde ele, à floresta de Sherbrooke, para ouvir as habilidades miméticas desses pássaros que, contemporâneos de John Cage, reproduzem qualquer som, natural ou artificial. Stravinsky ansiava ouvi-los e os pássaros-lira, tão intimidados como Hollywood, não cantaram para ele. Que pena! Que pena!
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordteo com a antiga ortografia.
Aristocracia de Manuel nos concebe o prazer de compartilhar da reunião na sala da casa de George Cukor. Sem falar nos contos de alcovas.
Hollywood hoje se resume a reuniões popularescas e filmes de tv sem a presença de Stravinsky ou Hepburn.
Restou-nos a aristocracia mundana do Manuel.