Levem os rapazes ao cinema. Borrifem-se para as classificações etárias e levem as criancinhas a ver Mud, de Jeff Nichols, que em português se chamou Fuga.
Quem me topa é a minha filha. Já sabe o que a casa gasta e disse-me: “Vai ver o Mud que vais gostar. É para a tua idade.” Estranhei. Não tenho os quase 30 anos que no filme têm os 44 de Mud, que é Matthew McConaughey. Será que ela me vê com os 14 aninhos de Ellis ou Neckbone, os miúdos do filme?
Os dois miúdos descobrem Mud escondido numa ilha no meio do rio Mississípi. Vive num barco que uma enxurrada, acreditem, plantou nos altos braços de uma árvore. Mud transpira aventura e confiança. Cheira a perigo. É um deus – aparece e desaparece como Nossa Senhora –, funde-se com o verde das árvores, com a dourada limpidez da areia da praia.
Mud é o amigo muito mais velho que um miúdo quer ter e admirar. É livre, tem bons músculos, uma pistola presa no cós das calças. E é bonito – todo o miúdo tem uma cruel repulsa pelo feio.
Mud vive no meio da mais pura das naturezas, como o taralhouco do Rousseau nunca teria vivido. Já matou um homem. É romântico porque é vadio. É por tipos assim que os nossos filhos começam a mandar a figura paterna para o fundo do saco. Nada que não tenhamos já feito.
Mud pesca e faz fogueiras. Excentricidades destas fazem um miúdo sonhar. Junte-se-lhes a insolência bronzeada, uma camisa que nunca despe, e teremos dois miúdos do Arkansas apaixonados: querem ser assim quando forem grandes.
Há prémios que vêm com bónus. Os dois miúdos conhecem, depois, as pernas de Juniper, namorada de Mud. São as esplêndidas pernas de Reese Witherspoon e é como se fosse a namorada deles. Por ela, pelos curtíssimos calções dela, jurariam morrer – já não amam só Mud ou Juniper, amam o amor deles que julgam incondicional. Juniper é o que uma mulher é no meio da desgraçada adolescência masculina – uma convulsão, um desassossego. Ela é linda e a beleza, oh pois!, só pode e sabe portar-se mal.
Às vezes, o filme cala-se. Mas o que os diálogos não nos dão, dá-nos o rio, as árvores, as casas de estacas sobre as águas, a pureza saloia do rosto de Ellis, a tensão faulkneriana de Mud. O realizador sabe o que faz: Mud é um filme com sede de exteriores e de exteriores num movimento incessante.
Em Mud aprende-se: a lealdade, o amor, a separação. É um filme bom porque tem cobras. São traiçoeiras. Indiciam, o que nós, os velhos, já sabemos: que a vida não seria nada sem o fascínio da ilusão, o dulcíssimo encanto da decepção.
Não é para me gabar, mas estes gajos de 30 anos não vão lá sem a ajuda de um tipo de 60. Sem Sam Shepard, McConaughey não ia a lado nenhum. E para saberem do que estou a falar têm de ir ver Mud.
A Mud só lhe falta ter piratas para ser o Moonfleet de Fritz Lang.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Mud, em Portugal Fuga, no Brasil teve o título Amor Bandido.