Bang-Bang

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Os meus melho­res bons sem­pre foram maus. Andam para aí a pre­gar ser­mões e até impor­ta­ram uma açu­ca­rada expres­são ame­ri­cana – role model –, mas a minha Amé­rica sem­pre foi outra, a come­çar pela Amé­rica da minha rua. Rolem lá os mode­los onde qui­se­rem, mas na Luanda dos anos 60, de Baixa branca, meu bairro mulato e pre­tís­si­mos mus­se­ques, ainda eu acor­dava com o sol, já os meus heróis acor­da­vam com a lua. Com os mío­pes olhos de hoje, sei bem que eram ape­nas uns miú­dos de 20 anos, mas pelos olhos desse tempo eram heróis, os ver­da­dei­ros artis­tas. Che­ga­vam a casa de madru­gada, viviam aven­tu­ras no calor da noite, ao cre­pús­culo extasiavam-nos com foto­gra­fias de mulhe­res nuas que eles mes­mos tinham tirado. Depois, bang-bang, descobriu-se que eram uma quadrilha.

Há uma qua­dri­lha assim em Johnny Gui­tar. Boa­zi­nha. Tem um Dan­cin’ Kid a chefiá-la. Ora, não havia qua­dri­lha mais dan­ça­rina do que a qua­dri­lha da minha rua. Durante um ou dois anos assal­ta­ram ouri­ve­sa­rias pela calada da noite, fas­ci­na­dos pela fais­cante beleza de ouro e prata. Há uma certa mari­quice nisto: qua­tro rapa­zes e, vai-se a ver, o que que­rem é ter na palma da mão um dia­dema, uma tiara, um anel de noi­vado. E tal como a qua­dri­lha de Johnny Gui­tar cor­ria a acolher-se no ute­rino saloon de Vienna, assim os qua­tro rapa­zes bran­cos da minha rua iam, bang-bang, para os colos de veludo do Copa­ca­bana, caba­ret tão perto da Igreja de São Paulo, ou do Tamar, antro a que nenhuma igreja atre­via a chegar-se.

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Eram uma qua­dri­lha e con­ti­nu­a­ram a ser os meus heróis. Rou­ba­vam ouro? Tal­vez fosse para dar aos pobres – a umas pobre­zi­nhas, vá lá. Não mata­vam, não tinham uma arma – ou se tinham uma ou duas Stars, usavam-nas de cer­teza sem balas. Não é assim o loi­ri­nho Tur­key, que atra­vessa o Johnny Gui­tar de cami­sas ama­re­lís­si­mas e len­ços rubros, com pla­tó­nica e per­dida pai­xão pela matura idade de Vienna, a dona do saloon? Alguém o vê dar um tiro?

Um dia, a polí­cia cer­cou, em casa, o Dan­cin’ Kid da qua­dri­lha da minha rua. Estava a tomar banho e, molhado estava, molhado saiu, pela peque­nina janela de ven­ti­la­ção, para o telhado. Nu, no telhado, viu o miúdo negro vizi­nho: “Cesa­rito, vai bus­car uma camisa e umas cal­ças do teu irmão e atira-mas.” Cesa­rito virou Her­mes, bateu as asas e num minuto o Dan­cin’ Kid estava ves­tido. Em veludo se escon­deu: prenderam-no meses pas­sa­dos e bem passados.

O Cesa­rito e eu sem­pre sou­be­mos o que era o Bem. Éramos uns anji­nhos de cate­quese, ele preto e eu branco. Mas, ele que já está no céu e eu que ainda pere­grino em terra, que­ría­mos lá agora saber de role models, Jus­tin Bie­bers enjo­a­ti­vos e escu­sos ou Cris­ti­a­nos Ronal­dos for­ra­dos a milhões. Que­ría­mos bang-bang, o nosso Johnny Gui­tar, ban­di­dos bons, a capela imper­feita de uma aven­tura humana, dema­si­ado humana.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Um comentário para “Bang-Bang”

  1. Luanda 60, Acari 60, miúdos fascinados pelos bandos juvenis, aculturados e inspirados em Dacin Kids mulatos. O filme marcou a época em que nossos heróis eram cowboys
    Outros bandidos bons formaram quadrilha em 04 de fevereiro de 1961, Manuel e Cesarito com certeza formavam a quadrilha.

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