Consulto, antes dela, o mini Aurélio que comprei para minha neta. Meus dicionários são muito pesados para ela. Abri na página de turbilhonar, o que faz com que meu pensamento comece a voltear pelo espaço e pelo tempo, como se febril eu estivesse. Não estou. Mas a imaginação rodopia e busca longe e perto, hoje e ontem, pedaços de acontecimentos e visões.
Lá vem subindo pelas ladeiras de Diamantina, a Chaleira, velha senhora em trapos, o corpo coberto de latas. O barulho que ela faz no caminhar desperta a molecada que sai correndo e gritando: “chaleira do alto da poeira.” E as pedras voam na direção dos meninos.
Andávamos com nossas crianças nos carros, todos sem cinto de segurança e, às vezes, um deles ia em pé entre os bancos. Não éramos irresponsáveis e sim ignorantes. Voltávamos para casa, noite alta, a pé e sem medo, vindo de nossas aventuras noturnas. Sentíamos a brisa e o cheiro bom da “dama-da-noite” perfumando as farras, que não passavam de inocentes conversas com amigos ou amores tímidos. Um crime ocorrido nas última viagem do ônibus do bairro abalava a tranquilidade dos habitantes da cidade.
Na televisão, a bela e inteligente eco-jornalista diz que não se deve dar descarga depois do xixi noturno e só fazê-lo pela manhã, no primeiro do dia, para não desperdiçar água. De acordo com ela, a cada aperto gastamos vinte e oito litros do líquido. E até hoje fico imaginando que vaso sanitário pródigo é esse que ela possui em sua casa. Um quarto e uma suíte, diz o anúncio sobre o apartamento. Mas o banheiro está localizado no corredor. O corretor não dá o braço a torcer, é uma suíte canadense.
Todas as noites eu acordava para conferir se minhas filhas respiravam. Só depois desse ritual, eu retomava o sono. Imagino que todos os pais fazem isso, pois eu me lembro dos meus conferindo se eu estava bem coberto. Travesseiro e cobertor, isso é que as pessoas que amamos são para nós e nós para eles. Minha experiência com álcool veio de meus pais, nos tempos de gripes e resfriados. Álcool para afugentar a febre e conhaque no leite para melhorar a garganta. Não foi dessas experiências que adquiri o gosto pela cerveja e pelo vinho. Eles são inocentes.
Procuro o improvável, a memória do futuro. Mas arrisco algumas previsões cautelosas, sem medo de acertar. O certo é que tenho lembranças bem antigas, dos meus primórdios. Andar com um avô de bonde, olhando as montanhas do belo horizonte.
Uma noite em 1967, no Rio, e uma canção aplaudida pelo público do Maracanãzinho.
Uma profissão que entrava em minha vida para me aproximar de mais gente. O menino chega e seu nome significa gerado por Deus.
Um homem comemorando com amigos o nascimento de suas filhas. Um homem comovido diante do primeiro respirar dos netos. Um homem ao lado da mulher.
No dia dos pais, esse homem derrama lágrimas de alegria.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em agosto de 2013.
Uma noite de 1967. uma noite quente em Acari, suburbio violento do Rio, no ar uma voz, melodia e letra da mais bonita canção ja escutada. Voz solta nas estradas, filhos, netos, outros tempos, outras gerações. Bons tempos a velar o sono ds filhos!