No coração da canção

Houve um dia em minha vida em que um anjo negro me apareceu no meu quintal. Que trazia belezas ficou claro desde o primeiro momento, pois luzes envolviam o seu corpo que não era de santo, era de gente.

Mais tarde tomei conhecimento de que ele já aparecera em casas de Britos e Tisos, em Três Pontas. E circulava regularmente em torno dos Borges, de origem portuguesa, que habitavam um tal de Edifício Levy, no centro de nossa cidade.

A cidade moderna era pequena em habitantes e atividades culturais, que se concentravam em poucos lugares. Esse anjo surgia e nunca mais saía da existência de seus escolhidos. Assim todos se viam. Existiam duas palavras mágicas que ele distribuía: amizade e música. Aí um Borges, um Brant ou um Bastos acrescentavam às conversas o sonho de poesia e cinema que traziam nas veias.

Aí, quando nos demos por nós,ao nosso lado estavam os meninos, crescidos, Lô e Beto.  Hortas, Ângelos, Ornelas, Vilelas, Silvas, Alves, Novelis, Tavitos, Nanás, Mouras e uns tais mariltons balonas incrementavam harmonias e ritmos àquela  loucura santa juvenil que corria pelas ladeiras e desentupia os meios-fios  de preconceito da província.

Saúdo a todos, em volta, e lembro que quando falo em preconceitos de uma província estou pensando em todas, incluídas aquelas que se sentem internacionais. O quintal é o mundo e o mundo não passa de uma sobreposição de quintais.

Pacífico que sou, reconheço minha ousadia em lembrar nomes e peço perdão pelas ausências que o tempo e as cervejas impõem à minha memória.

Se as reuniões em volta daquele anjo personificado em nosso destino se resumissem aos encontros de amigos em volta da melhor música e cinema que se fazia naquele tempo, estaria formado um grupo de grandes apreciadores de arte. Mas não, o projeto era maior. Ele fazia uma música de melodia, harmonia e ritmo que nunca conhecêramos. E a voz, meu deus, como explicá-la? Só Deus.

zzzzzzzzzficEntão nós invadimos o país e depois o mundo. Ele tinha muito, mas todos nós lhe demos consistência e conteúdo, sua bagagem voou e voa plena de belezas criadas por seus companheiros de vida e canção. Sonhamos juntos e trabalhamos juntos. Com o alicerce que tinha e o que nós lhe demos, ele pôde e pode encantar as plateias de qualquer lugar deste planeta. Ele o faz humanadivinamente. E todos cantam com ele.

Não estávamos criando um clube ou um grupo. Mas o clube se fez. Clube de Belo Horizonte e de Minas Gerais. Do Brasil e do mundo, de todos, sem carteira de sócio, aberto para a beleza e a amizade. Clube de todas as esquinas.

Queríamos construir nossas belezas. Construímos. Não imaginávamos o futuro mas o fizemos. Olhando para o início, para hoje e para frente, sinto que alcançamos a comunhão. Nós merecemos.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em maio de 2013. 

Na foto, Fernando Brant e Milton Nascimento no Maracanãzinho, em 1967, na apresentação de “Travessia” no Festival Internacional da Canção. A foto é do acervo Museu Clube da Esquina

3 Comentários para “No coração da canção”

  1. Na minha esquina, em Acari, apreciávamos a beleza de outro clube, mineiro, brasileiro, do mundo.

  2. Me faltam palavras para expressar a minha admiração por esses ícones !!! Obrigado por vocês existirem turma do “Clube da Esquina”!

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