Viajando

Mudando de assunto, uma vez fiz com meu amigo Fernando Portela e outros jornalistas convidados, entre eles o José Carlos Cafundó, uma viagem à Itália a convite da Fiat para conhecermos a fábrica mais moderna da montadora, localizada em Malfi, uma região de campos verdes sem fim, a caminho do sul italiano. 

Cito os dois amigos porque são testemunhas de que não estou inventando história neste breve relato. 

Decolamos do aeroporto Marco Polo, em Veneza, direto para lá. Já tínhamos andado pelo norte, em Milão, Modena, Maranello e Veneza. 

Em Maranello, não posso deixar de registrar, entrei pela primeira vez a bordo de uma Ferrari, pilotada por um piloto de provas. Pela primeira vez para nunca mais. 

Na pista da fábrica, o bólido vermelho foi de zero a 200 km/h da partida até a primeira curva. Lá chegando, desacelerou a 150 km/h e serpenteou dois Ss — se não me engano, pois não deu tempo de contar — a 90 km/h, saindo daquele caminho de rato a 150 km/h e num piscar de olhos já estava a 200 km/h novamente, quando se abriu uma reta quase infinita em que o piloto me levou a 250 km/h. Ele me disse depois, ao cruzarmos a linha de chegada (hê, hê, hê) que poderia ter me levado a 300 km/h, mas não fazia isso com novatos. 

“O signore poderia ter saído voando pelo vidro”, disse ele, num italiano que nunca esqueci. 

Penso ter justificado em detalhes o meu “nunca mais”. Como presente, a Ferrari nos agraciou com uma magnífica obra em capa dura e papel  couchê brilhante 200 g, coberto de fotos coloridas gigantes, contando a história da fábrica e todos os modelos de seu único e mais admirado produto automotivo do mundo. 

É o máximo que tenho de uma Ferrari em minha casa para mostrar aos amigos e, penso também, o máximo que terei de uma Ferrari per tutta la mia vita

Mas eu queria contar da fábrica da Fiat em Malfi. Voamos num Boeing de três turbinas a 900 km/h até lá e eu ainda estava com a sensação de ter voado no chão a 250 km/h quando aterrissamos em Malfi. 

Na fábrica, no entanto, o mundo parecia ter parado. Não havia viva alma. Não era feriado, mas parecia. O chão da fábrica não tinha ninguém em carne e osso. Da Fiat mesmo só tinha o nosso guia e anfitrião, Camilo Fré, que foi o primeiro presidente da Fiat no Brasil, quando a marca se instalou em Betim-MG. Ah, sim, havia também um outro fiat em carne e osso, o engenheiro e gerente de operações da fábrica. E só. 

Ma che cosa, dove sei tutti quanti? — perguntava eu ao redor. 

Estávamos, de fato, diante do avanço industrial mais falado do mundo e do futuro da indústria e do emprego em nossa civilização. Era o ano de 1995 de nossa era. 

O chão da fábrica era coberto de robôs andando sobre trilhos, máquinas grandes com braços mecânicos que se requebravam e desmunhecavam em dedos pontiagudos, dos quais ora saiam faíscas ameaçadoras, ora ferramentas que apertavam parafusos recônditos, ora transportavam peças de carcaças dos automóveis que eram fixadas com a exatidão de ETs mecanizados recém descidos do espaço sideral. 

Em Maranello, tínhamos visto, dias  antes, senhoras de certa idade e de chinelos e aventais caseiros lidando com a costura à mão dos tecidos que revestiriam o chão e o teto, os bancos e os painéis das portas do cockpit das Ferrari em produção. 

Ali em Malfi não havia senhoras. Ali em Malfi havia partes inteiras de automóveis, motores, eixos e rodas que arribavam pelos ares em comitivas organizadas por computadores que comandavam depósitos construídos ao redor da fábrica, estes sim ocupados por gente em carne e osso e motoristas de caminhões que não paravam de chegar. Era o sistema japonês just in time acontecendo ao vivo e a cores. 

A fábrica de Malfi logo seria suplantada, em automação, por outra que estava sendo construída no norte, não me lembro mais onde, mas que seria 80% operada por robôs. A de Turim, a mais antiga fábrica da Fiat, estava prestes a se tornar peça de museu. Nem fomos levados a conhecê-la. 

O futuro era a indústria robotizada. E o presente desse futuro estava ali diante de nós. Sim, havia gente de carne e osso na fábrica de Malfi. Estavam atrás de vidraças no alto ao redor do grande galpão de produção, comandando computadores que por sua vez comandavam os robôs. Através das vidraças, um ou outro vinha olhar as tarefas executadas no chão da fábrica. 

De repente, vi um humano de macacão dentro de uma linha de montagem. Perguntei ao Portela, ao meu lado, o que ele fazia ali. E Portela, que não era marinheiro de primeira viagem à Fiat na Itália, me disse que os robôs só executavam algo como 70% dos serviços. Os humanos faziam a parte mais leve, enquanto os robôs pegavam no pesado. E faziam também o que exigia certa capacidade de interpretação das coisas, coisa que os robôs não tinham como fazer. O mecânico em questão estava testando com um laptop se os instrumentos do painel dos automóveis funcionavam perfeitamente. 

Depois que um automóvel saía de um trecho da linha de montagem, era impossível dar “marcha a ré” para corrigir alguma coisa errada lá atrás. Garantir que tudo corresse bem era a tarefa dos humanos.

Coisas muito simples também eram: não vale a pena gastar milhões de dólares no projeto e na construção de máquinas para ajustar uma porta, aparar o excesso de uma solda, subir e descer o vidro para se certificar se isso ocorre à perfeição. 

Mais adiante, vi que o setor de pintura era operado 100% por humanos. Fui informado de que robôs não sabem pintar. O que sabem é erguer os chassis dos carros, já com a carroceria, para mergulhá-los em sucessivos tanques de pintura. O resto é com os humanos. 

Toda essa memória é para dizer que Lula está certo em visitar o Japão em busca de inovação e investimentos. E que Trump está tentando fazer os EUA voltarem aos tempos da brilhantina ao fechar os portos do seu país às nações amigas. A indústria automotiva americana não está mais lá, migrou para outros lados do planeta em busca de mão-de-obra mais barata e não voltará jamais. O custo é menor e a tecnologia barateou ainda mais. O que lá ficou é caro e do tempo do onça. 

Ressuscitar o passado custaria trilhões de dólares que os EUA não têm mais e os italianos fazem melhor. Os franceses também. Os coreanos também. Os japoneses também. Os chineses também. Os indianos também. Os mexicanos e canadenses (ai, ai, ai) também. Todo mundo faz melhor. Até o Brasil está fazendo aviões melhores que os EUA. 

E não é por outra razão que a Nippon Airways, maior aérea do Japão, firmou acordo na visita de Lula para a compra de 15 aeronaves de passageiros ER-190 da Embraer, com opção de mais cinco, num investimento total de R$ 10 bilhões. Os ER-190 são os melhores do mundo, junto com os da canadense (ai, ai, ai) Bombardier, para voar distâncias curtas e médias entre as diversas ilhas em que se divide o Japão. 

E, acompanhando a Nippon Airways, também a Toyota firmou acordo de US$ 2 bilhões de investimentos automotivos no Brasil até 2030. São quase R$ 12 bi nesses dois clientes. 

Os tempos mudaram, mister Trump. As vendas externas dos EUA representam hoje somente 17% do comércio mundial. Em tempos idos, chegavam a 30%. Hoje os EUA dependem do mundo até para criar galinhas e porcos e ter ovos com presunto no breakfast. 

Não vai ser com Musk fazendo foguetes para voar a Marte que a América será grande outra vez. 

Só será grande no novo mundo se cooperar com o crescimento de todos, pois é desse crescimento que dependerá para sobreviver. 

Nelson Merlin é jornalista aposentado e com vontade de viajar outra vez para ver as novidades. 

29/3/2025

     

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