Trump não entende nada, nadica, de coisa alguma

No sábado, 5 de abril, mesmo dia em que milhares e milhares de americanos foram às ruas de mais de mil cidades protestar contra Donald Trump, dizer para ele “tirar as mãos dos estudantes, da pesquisa, das escolas, dos direitos, do planeta”, dois artigos publicados nos jornais brasileiros mostraram, com uma clareza fantástica, admirável, como toda a visão que o sujeito tem da economia dos Estados Unidos – e do mundo – é totalmente, absolutamente equivocada.

Ele parte de um diagnóstico que simplesmente não é verdadeiro, que é contrário da realidade, para embasar suas ações que estão destruindo em pouquíssimo tempo a estrutura da economia mundial que foi construída ao longo dos últimos 80 anos.

Há, é claro, muitas, várias, diversas maneiras de demonstrar que as ações de Trump na economia são erradas, e vão resultar em inflação maior, desemprego maior, estagnação, estagflação, depressão. Mas confesso que fiquei muito impressionado com a clareza, a obviedade do que mostraram em seus artigos Fareed Zakaria, colunista do Washington Post, publicado no Estado de S. Paulo, e Carlos Alberto Sardenberg, do Globo.

Sardenberg escreve que Trump “tem visão incrivelmente equivocada de seu país”. “Para Trump, os Estados Unidos passam por um desastre total, têm sido roubados por todos os outros e estão mais pobres. Os fatos mostram exatamente o contrário. Nas últimas décadas, os Estados Unidos foram, entre os mais ricos, o país que mais cresceu. Subiu o PIB, e subiu a renda per capita. Nasceram lá e lá continuam as empresas do século XXI, aquelas baseadas na tecnologia de alta performance: Apple, Meta, Amazon, Microsoft, Google e, mais recentemente, Nvidia, que produz chips para inteligência artificial.”

Fareed Zakaria diz exatamente o mesmo, usando diversos dados para demonstrar o tamanho do erro do diagnóstico que está por trás dos tarifaços de Trump:

“Ele considera os EUA uma colônia vitimizada, explorada por outros países que lhes roubaram empregos, indústrias e dinheiro. (…) A realidade é o oposto. (…) A verdadeira história econômica das últimas três décadas é que os EUA estiveram à frente de todos os seus principais concorrentes. Em 2008, a economia americana era quase do mesmo tamanho que a economia da zona do euro, agora é quase o dobro.

“Em 1990, a média salarial dos EUA era cerca de 20% maior do que a média geral no mundo industrializado avançado; agora é cerca de 40% maior. Em 1995, um japonês era 50% mais rico do que um americano em termos de PIB per capita, hoje um americano é cerca de 150% mais rico do que um japonês. Na realidade, o Estado americano mais pobre, o Mississippi, tem um PIB per capita maior que o do Reino Unido, da França ou do Japão.”

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Não pode haver nada mais claro.

Os dois artigos demonstram – com argumentos e números – o que as pessoas de bom senso já sabiam, mas mais da metade dos eleitores americanos ignoraram solenemente: o sujeito não entende nada, lhufas, neca de pitibiribas de economia.

Bem, ele não entende nada de coisa alguma – mas de economia, então, é uma absurda nulidade.

Aqui vão as íntegras. (Sérgio Vaz)

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Trump pode levar os EUA a um papel secundário no mundo

Por Fareed Zakaria, O Estado de S. Paulo, 5/4/2025

O Dia da Libertação é um nome oportuno para a política do presidente Donald Trump de impor novas tarifas massivas sobre produtos de todo o mundo. Ele considera os EUA uma colônia vitimizada, explorada por outros países que lhes roubaram empregos, indústrias e dinheiro. “Nosso país e seus contribuintes foram enganados por mais de 50 anos”, disse ele ao anunciar seus planos, na quarta-feira.

Seus asseclas, como o vicepresidente J.D. Vance e o secretário de Comércio Howard Lutnick, repetem essa percepção como papagaios, definindo a imagem de um país destituído, com fábricas esvaziadas, trabalhadores desempregados e salários estagnados.

A realidade é o oposto. E somente porque é o oposto – em outras palavras, por causa do poder econômico inigualável dos EUA – Trump é capaz de tentar sua política tarifária. O peso econômico dos EUA lhe permite tentar forçar o restante do mundo a se curvar à sua vontade. Mas Trump está usando o poder americano de uma forma tão arbitrária, destrutiva e burra que isso quase certamente resultará em um desfecho “perde-perde” para todos.

A verdadeira história econômica das últimas três décadas é que os EUA estiveram à frente de todos os seus principais concorrentes. Em 2008, a economia americana era quase do mesmo tamanho que a economia da zona do euro, agora é quase o dobro.

Em 1990, a média salarial dos EUA era cerca de 20% maior do que a média geral no mundo industrializado avançado; agora é cerca de 40% maior. Em 1995, um japonês era 50% mais rico do que um americano em termos de PIB per capita, hoje um americano é cerca de 150% mais rico do que um japonês.

Na realidade, o Estado americano mais pobre, o Mississippi, tem um PIB per capita maior que o do Reino Unido, da França ou do Japão.

E ainda assim Trump está convencido de que, ao longo de todas essas décadas, os EUA estiveram em um declínio acentuado. Sua visão de mundo parece ter sido definida na década de 60, quando, em sua memória, os EUA eram uma grande potência industrial (outra parte dessa antiga visão de mundo é estimar exageradamente a capacidade de Moscou, que em sua mente, ao que parece, continua sendo um ator econômico imponente no cenário mundial, com o qual ele poderia fazer muitos negócios importantes. A Rússia, bizarramente, foi excluída das novas tarifas).

A realidade de os EUA serem a nação dominante nas esferas de crescimento mais rápido e mais críticas da economia global atualmente – tecnologia e serviços – parece não significar nada para ele.

Suas tarifas foram calculadas usando um método mais próximo ao vodu que à economia. Entre os muitos erros, elas se baseiam apenas nos déficits comerciais em mercadorias dos EUA em relação aos outros países. De alguma maneira, não importa que os EUA gerem superávits enormes em serviços – exportando softwares, serviços de software, filmes, músicas e serviços jurídicos e financeiros para o mundo. Mais de 75% da economia dos EUA é aparentemente uma penugem impalpável; o aço é o verdadeiro negócio.

Mas embora sejam a potência dominante no mundo, os EUA não são tão fortes a ponto de poderem agir de forma tão irracional. A economia mundial cresceu em tamanha magnitude e escala que encontrará maneiras de contornar o protecionismo americano, que agora figura entre os mais notórios do mundo.

Ao contrário das teimosas convicções de Trump, os EUA já eram realmente um tanto quanto protecionistas, com barreiras comerciais tarifárias e não tarifárias maiores do que em outros 68 países. Com essas novas tarifas, o protecionismo americano foi às alturas, com taxas mais altas que as da Lei Tarifária de 1930, que exacerbaram a Grande Depressão. No curto prazo, todos sofrerão. No médio e longo, porém, os países começarão a evitar negócios com os EUA.

Esse movimento já começou. Desde que Trump assumiu o cargo em 2017, os EUA abandonaram praticamente todos os esforços para expandir o comércio, mas outros países assumiram a responsabilidade. A União Europeia assinou oito acordos comerciais novos; a China, nove. Conforme observou o presidente da Rockefeller International, Ruchir Sharma: “Dos 10 corredores comerciais de crescimento mais rápido, cinco têm terminal na China; apenas dois têm terminal nos EUA”. Países precisam de crescimento, e isso significa comércio.

A China será claramente a grande vencedora nessa nova economia mundial porque se posicionará como o novo centro de comércio. Adicionando a isso a hostilidade de Trump em relação aos aliados mais próximos dos EUA, os americanos provavelmente verão a Europa, o Canadá e até mesmo alguns dos aliados na Ásia buscarem maneiras de trabalhar com a China.

A visão de mundo nostálgica de Trump remonta a uma época ainda mais distante do que a década de 60. O presidente evoca com carinho o fim do século 19, quando, conforme ele descreveu esta semana, os EUA tinham apenas tarifas e nenhum imposto de renda e eram mais fortes economicamente do que jamais haviam sido em comparação ao restante do mundo. Essa história é absurda. Em 1900, os EUA eram responsáveis por cerca de 16% da economia global segundo uma métrica. Agora, sua participação equivale a 26%. Os padrões de vida e de saúde dos americanos são muito mais elevados hoje.

Mas ao agir segundo sua fantasia nostálgica, Trump pode muito bem acabar arrastando os EUA de volta ao que o país era naquela época: uma nação mais pobre, dominada por oligarcas e corrupção e contente com sua arrogância em seu próprio quintal e em intimidar seus vizinhos, mas secundário em relação às grandes correntes globais da economia e da política. (Tradução de Guilerme Russo.)

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Trump contra a globalização

Por Carlos Alberto Sardenberg, O Globo, 5/4/2025

Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), definiu assim a situação econômica após o tarifaço de Trump: “Altamente incerta”.

As possíveis consequências da guerra tarifária confirmam. A coisa toda pode resultar em inflação nos Estados Unidos (e nos países que também elevarem suas tarifas) e desaceleração da economia americana e mundial, dada a queda inevitável no comércio global. Alguns analistas já falam em possível recessão. Daí a incerteza nas expectativas: inflação subindo exige que os bancos centrais aumentem ou mantenham taxas de juros elevadas. Se o problema principal for a recessão, a receita é invertida: juros para baixo. Que fazer se as duas coisas acontecerem juntas?

O nome é estagflação — e não há remédio fácil à disposição. Por enquanto, esse cenário não é o mais provável. Mas Powell disse que o tarifaço pode gerar ao mesmo tempo inflação e desemprego.

O risco não é apenas americano. Trump está dinamitando as estruturas econômicas e políticas que garantiram décadas de prosperidade global, com expressiva e inédita redução da pobreza. Claro que o mundo globalizado passou por crises, claro que alguns países tiveram desempenho melhor, claro que alguns ficaram para trás, mas o livre-comércio, com tarifas de importação negociadas e reduzidas, trouxe contínua prosperidade geral. É isso que Trump põe abaixo.

Só podia partir de um líder que tem visão incrivelmente equivocada de seu país. Para Trump, os Estados Unidos passam por um desastre total, têm sido roubados por todos os outros e estão mais pobres. Os fatos mostram exatamente o contrário. Nas últimas décadas, os Estados Unidos foram, entre os mais ricos, o país que mais cresceu. Subiu o PIB, e subiu a renda per capita. Nasceram lá e lá continuam as empresas do século XXI, aquelas baseadas na tecnologia de alta performance: Apple, Meta, Amazon, Microsoft, Google e, mais recentemente, Nvidia, que produz chips para inteligência artificial.

As ações de todas essas empresas despencaram depois do tarifaço anunciado por Trump. Justamente porque elas desenvolveram a integração do processo produtivo, dividindo as fases de produção por dezenas, centenas de países, ganhando eficiência nunca vista. O iPhone foi inventado nos Estados Unidos, continua sendo projetado por lá, mas é montado mundo afora, especialmente na China. Com Trump cobrando tarifa de importação de 65% de todo produto originário da China, ficará muito mais caro. Isso é inflação. Com o preço mais alto, certamente haverá menos consumidores em condição de pagar. Isso é desaceleração, desemprego.

Mesmo a indústria automotiva, de séculos anteriores, está em perigo. Trump levou trabalhadores de Detroit ao anúncio do tarifaço. Garantiu que mais carros seriam fabricados nos Estados Unidos. Um dia depois, as ações da Ford despencaram. A Stellantis (Chrysler, Jeep e Ram) colocou trabalhadores americanos em licença. E parou a produção no Canadá e no México. Eis a confusão: a empresa produz peças nos Estados Unidos, enviadas ao Canadá e México, onde são montados os carros depois exportados para os Estados Unidos. Com tarifas na ida e na volta, como calcular os preços?

Isso é prejuízo para as empresas.

A bronca de Trump é com o enorme déficit comercial dos Estados Unidos. A lógica é rasteira: se os americanos compram mais produtos dos estrangeiros que os estrangeiros compram dos americanos, então os Estados Unidos são sendo roubados. Ora, se os americanos gastam mais, é porque poupam menos do que investem. Já são ricos para isso. Os produtos importados facilitam a manufatura local e melhoram a vida dos americanos.

Sim, a globalização deixou muitos para trás, também nos Estados Unidos. A questão econômica e política destes tempos é como incluir essas pessoas e países. Trump quer quebrar o sistema achando que melhorará a vida dos americanos, danem-se os outros. Mas, por serem os maiores, os Estados Unidos são os que têm mais a perder.

Por aqui, um ponto interessante. Todo mundo passou a se dizer contra o protecionismo, até Lula, agora o ex-campeão da proteção. Será?

6/5/2025

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