Quando janeiro chegar

A base do governo esfarelou-se, virou peça de ficção. Exemplo disso foi sua humilhante derrota na Câmara dos Deputados, na noite de  segunda-feira. Sessenta por cento dos 346 votos favoráveis ao requerimento de urgência para o projeto de lei que derruba o novo decreto do IOF vieram de parlamentares da base aliada de Lula — inclusive de partidos com cargos ministeriais. Com apenas 96 votos contrários, o governo deu uma demonstração do seu real tamanho e do quanto está isolado no Parlamento.

Como o desembarque dos aliados na Normandia, durante a II Guerra Mundial, o mundo da política sabe que os partidos do Centrão — ou a maioria deles — pularão da nau governista. Só não se sabe, ainda, quando será o Dia D.

Como o governo cultiva o dom de se iludir, atribui sua derrota a um fato isolado, fruto da insatisfação dos deputados com a não liberação das emendas parlamentares. Sem negar esse fator — e nem a exaustão da sociedade com o aumento de impostos —, pesou mesmo para a derrota do governo a erosão da imagem de Lula e da aprovação de sua gestão.

Há uma simetria nas pesquisas realizadas pelos institutos Datafolha, Quaest e Ipsos/Ipec: todas detectam a consolidação da imagem negativa do presidente, como se essa percepção tivesse se calcificado no imaginário dos brasileiros. É um fenômeno que, para ser compreendido, não pode ser analisado apenas pela ótica da política institucional. Paulo Baía, cientista político e professor da UFRJ, compara a rejeição a Lula a uma febre que não se explica apenas por sua temperatura externa.

Segundo ele, é preciso entender a rejeição como um “fenômeno psicológico e social” e como “um campo de forças invisíveis que atravessa o corpo coletivo da sociedade”, condensando frustrações acumuladas, desilusões difusas, sentimentos de traição, desencanto e medo. Utilizando a imagem de um espelho estilhaçado, Baía detecta uma sensação coletiva de decepção, “como se o mito fundacional do lulismo estivesse sendo confrontado por uma realidade que não suporta mais a nostalgia”.

Ulysses Guimarães costumava dizer que o Congresso Nacional reflete a média da sociedade. Assim, os parlamentares detectam essa decepção e frustração difusa dos brasileiros, o que alimenta o ânimo oposicionista de partidos chamados de Centrão. Sobretudo porque a Arca de Noé da composição ministerial não deu ao governo uma identidade programática nem formou a prometida frente ampla do segundo turno.

É um quadro completamente diferente dos dois primeiros mandatos de Lula, nos quais havia uma “oposição governista”, que defendia mais a política econômica de Palocci e Henrique Meirelles do que o próprio PT. Agora, Lula tem uma união instável com o “governismo de oposição”, que, quanto mais o tempo passa, mais é oposição e menos é governo. Nesse diapasão, o desembarque da nau governista é apenas uma questão de tempo — e a derrota na votação de segunda-feira foi uma espécie de ensaio para o Dia D.

Desde já, alguns partidos do centrão — como União Brasil e Progressistas — tomaram um caminho sem volta. O tamanho do desembarque e sua data dependem de variáveis, entre elas o desfecho do processo de Bolsonaro, com sua provável condenação, e a definição de quem será o ungido para ocupar o espaço da direita e centro-direita. Se esses dois campos se unirem em torno de um nome como Tarcísio Freitas, o abandono da nau governista tende a ser encorpado pelo Republicanos e pelo PSD, ainda que de forma majoritária. Outros partidos, como o MDB, poderão ficar com um pé em cada canoa na disputa presidencial de 2026.

Enquanto vai se delineando uma estratégia clara no campo oposicionista, o mesmo não se pode dizer do lado governista. No tocante às alianças para 2026, os objetivos vão sendo minimizados, com o presidente e o PT se dando por satisfeitos se, na composição do seu palanque eleitoral, contarem com franjas de partidos de centro-direita — ainda que essas legendas não participem formalmente da coligação. Lula pode até puxar um dissidente aqui, outro ali, mas dificilmente conseguirá impedir que boa parte do Centrão participe organicamente de uma candidatura oposicionista.

Não está descartada a hipótese de Lula tentar furar o cerco em que se encontra por meio de uma fuga para a frente. Ao sentir-se isolado, pode cair na tentação de dar uma guinada à esquerda, como preconizam figuras históricas do Partido dos Trabalhadores, como José Genoíno, José Dirceu e Rui Falcão. O governo voltou a apelar para o discurso do pobre contra o rico — agora travestido, nas palavras de Fernando Haddad, como o conflito entre “a turma da cobertura” e a do “andar de baixo” da sociedade.

Esse giro à esquerda coloca o Banco Central e seu presidente, Gabriel Galípolo, na alça de mira. Três dos quatro candidatos à presidência do PT fizeram ataques contundentes à política de juros adotada na gestão Galípolo, tratando-a como inibidora do desenvolvimento e subordinada aos interesses “espúrios” do mercado financeiro. Esse discurso encontra ampla receptividade na bancada parlamentar e na militância do PT.

A questão é saber se Lula cederá à pressão e dará o cavalo de pau preconizado por seus companheiros. Caso trilhe esse caminho, estará dando ao Centrão — ou à sua maioria — o pretexto para antecipar o seu abandono do governo.

O que se percebe é um presidente catatônico, sem entender as profundas mudanças ocorridas na sociedade. Nesta terça-feira, a coluna de Mônica Bergamo — sempre bem informada sobre a cozinha do Partido dos Trabalhadores — relatou a perplexidade de Lula e sua resistência em seguir as orientações do ministro de Comunicação, Sidônio Palmeira, alegando não querer se transformar em um tiktoker. Enquanto se recusa a usar ferramentas modernas, a oposição nada de braçada nas redes sociais.

Até o fim do ano, centrão e governo continuarão dançando um minueto, sem oficializar o rompimento. Nessa toada, o fim da união instável pode acontecer em janeiro, quando algumas variáveis atuais já estarão equacionadas. Algumas lideranças petistas, como Rui Falcão, trabalham com essa hipótese. Se estiverem certos, o Dia D estará logo ali, na esquina.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 18/6/2025. 

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