Paladar não se discute. Ou…

Inadvertidamente, em um gesto automático, Flavinho pegou com a mão uma das azeitonas que haviam sobrado na caixa de pizza sobre a mesa. Antes que a levasse à boca, tia Alzira reage.

– Não faça isso, menino! Não se pega alimento com a mão.

– Mas tia, eu só pus a mão na azeitoninha, não encostei em mais nada.

Na caixa havia a sobra de dois pedaços da pizza. A tia não aceitou a resposta.

– Higiene tem que ser rigorosa.

Nisso surge o primo Zezinho.

– O que rola?

A tia não entendeu a pergunta, pois na sala só havia peças fixas, mas Flavinho serviu de tradutor. Contou o que estava havendo.

– Mas nós não pegamos o pão com as mãos? – contra-argumenta o recém chegado.

– E empadinhas, coxinhas – replica Flavinho.

– Isso é diferente – começa a dizer a tia, mas tem sua fala interrompida. Um amigo dos rapazes, que mora na casa vizinha, e transita à vontade nesta, surge como sempre animado. Nota que há alguma coisa no ar.

– E aí, tudo nos conformes?

E antes de qualquer resposta…

– Oba! Pizza!.

Pega um pedaço com a mão, dá uma mordidaça e diz, com a boca cheia:

– Cheguei na hora certa!

Tia Alzira está na casa para cuidar dos rapazes, enquanto a mãe deles viaja. Não conhecia a rústica figura. Um tanto espantada, repete seu conceito de higiene. E ouve simplesmente isto:

– Ah, vai, dona. Só falta a gente pegar garfo e faca pra comer uma azeitona.

A resposta vem de pronto.

-Qualquer pessoa com um mínimo de boas maneiras sabe que basta espetá-la com o garfo e levá-la à boca.

Filosófica discussão em torno de azeitonas!

De tudo, o pior é que o infrator não só mastiga a pizza manuseada, como fala de boca cheia. E nessa condição acaba por dizer que é uma pessoa simples, mas de bom paladar. “Como de bife a buchada”.

Os sobrinhos têm que conter um súbito mal-estar estomacal, mas para seu espanto titia troca o ar grave por um sorriso: “Estou falando apenas de modos para comer. Paladar é outra coisa. Sabe que eu também gosto muito de buchada… e também de fígado e coração, viu?”

Prevendo o que pode vir, os sobrinhos começam a falar em macarronada para o jantar. Mas a senhora não lhes dá atenção.

– Se vocês comprarem o bucho, preparo para o jantar desta noite – conclui com expressão de gula.

Noite chegada, há uma animada expectativa de preparação para o jantar. A buchada está pronta, no fogão. Os sobrinhos ajudam a pôr a mesa, felizes. Quem os visse perguntaria: felizes por quê? A resposta vem quando toca a campainha da porta da rua. Um sobrinho atende, e logo volta com a encomenda trazida pelo motoboy: dois Big Macs.

Acompanha: dois saquinhos com batatas fritas. E agora, vão comê-las com garfo? A tia compreende a situação.

– Bem, neste caso…

Vai mais longe. Aceita a oferta dos rapazes e recebe duas batatinhas.

-Estou me sentindo muito sirigaita… Mas que isto está bom, está!

E pega um punhado… com as mãos.

Quinze minutos passados, a campainha da porta da rua toca novamente. Chegam mais dois Big Mac. Um para a tia. Será que vai gostar? Pega com a mão esquerda (é canhota), dá uma bela mordida, diz que é uma delícia, fica feliz também com seu saquinho de fritas. Mas… e a buchada? Esquecida em cima do fogão, acabou azedando.

Nota do autor – Não come Big Mac por possuir 494 calorias. Em frequentes idas ao Rio entregava-se a dobradinha (como o prato é chamado aqui) à moda do Porto, concorrido prato feito com bucho de boi. Nos fundões do Nordeste experimentou uma buchada de bode (cabrito não havia), e gostou. Está pensando em convidar os autores dos textos deste blog para experimentar uma dobradinha à moda da casa, em sua residência.

Com uma ressalva. Não serão aceitas entregas de alimentos por motoboys.

Este conto foi originalmente publicado no blog Vivendo e Escrevendo, em 2/12/2024. 

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