Não rolou um clima, então não teve golpe. Se tivesse rolado o clima, então teríamos um golpe. Com outras palavras, é o que disseram os golpistas confessos Augusto Heleno e Jair Bolsonaro, com a cara mais limpa deste mundo, ante o olhar duro de seu interrogador, que queria saber se afinal iam dar ou não um golpe de estado após a reeleição perdida em 2022.
O tal “clima” que não rolou virou a peça fundamental da sentença que será proferida ao fim do atual julgamento, previsto para setembro.
A definição sobre a necessidade de rolar ou não um clima para se dar um golpe de estado não figura nem no código penal nem na Constituição Federal de 1988. Isto posto, de onde sacaram o argumento os dois acusados?
Das cartucheiras que os milicos carregam, emblematicamente, nos seus cinturões mentais. Em tempos de guerra, na cintura propriamente dita. Em tempos de paz, na gaveta da escrivaninha, dentro de um coldre de couro brilhante e bem escovado, geralmente na cor marrom, mas que também pode ser preto, jamais branco ou rosa, porque nessas cores, convenhamos, pega mal…
Falo assim porque tive um. Ganhei de aniversário de minha tia querida, quando fiz 7 anos. Meu cinturão tinha dois revólveres prateados, lindos, abrigados dentro de coldres de couro branco cravejados de pedras vermelhas e cheios de franjas balouçantes pelo lado de fora.
E lá ia eu pelo pelo jardim escuro da casa de minha avó, em busca de malfeitores que por ali dessem as caras. Ao avistar um, a lei era executada na hora, a tiros certeiros de espoletas que alumiavam a escuridão. Após o uso, os revólveres voltavam fumegantes para dentro dos coldres, deixando no ar um cheirinho de pólvora seca que me encantava.
Levei um tempo para acreditar que existiam armas de verdade, capazes de matar adultos e destruir quarteirões.
Só descobri, de fato, quando fiz 18 anos e caiu sobre as cabeças de minha geração o golpe militar de 1964. Faltou pouco para Porto Alegre ser bombardeada pelos caças da base aérea de Canoas. O Palácio Piratini já estava cercado pelas forças legalistas da Brigada Militar. O governador Hildo Meneguetti fugira para o interior, o ex-governador Leonel Brizola, então deputado federal, assumia o comando da resistência, numa tentativa frustrada de reeditar a Campanha da Legalidade, de 1961.
Ali rolou um clima e o golpe aconteceu.
Sem clima, não tem golpe. Verdade. Sem clima não tem namorico, sem clima os amantes perdem o tesão, sem clima, por mais que Deus tentasse, a humanidade nem sequer existiria.
Por isso sou a favor de se incluir o tal clima na sentença contra o golpe tentado. Não para justificar a falência de um golpe e deixá-lo passar ao largo, como as pedras na beira da estrada.
Não.
Que se diga lá que com clima ou sem clima um golpe de estado jamais poderia ser discutido por autoridades públicas como alternativa a derrotas eleitorais. Que o cinismo, a sem-vergonhice e a cara de pau são sinônimos. E para que se lembrem todos que por um triz não tivemos o golpe de 2022.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e ainda bestificado com a cara de pau dos golpistas diante do tribunal que os condenará.
16/6/2025