O texto abaixo foi publicado no número 91 da revista Afinal, com data de capa 27 de maio de 1986. Era assinado por Sérgio Vaz, com Luci Vasconcelos.
No dia em que se transformou na primeira brasileira a ser premiada como Melhor Atriz no Festival Internacional de Filme, em Cannes, a mais importante mostra competitiva do cinema europeu, Fernanda Torres estava às voltas com um problema: não conseguia adaptar-se às lentes de contato necessárias para transformar em azul o castanho de seus olhos.
A mudança da cor dos olhos é parte da transformação pela qual passa Simone, ao assumir uma nova identidade, com o nome de Rosana Reis, na novela Selva de Pedra, no horário nobre da Rede Globo. Mas as lentes de contato irritavam seus olhos, e Fernanda teve que gravar as cenas na Casa de Álvaro Alvim, na Avenida Vieira Souto, no Rio de Janeiro, na manhã de segunda-feira, dia 19, com óculos escuros. Quando terminou a gravação, foi almoçar na casa dos pais, os atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres; em seguida foi para a casa do seu irmão Cláudio, um cenógrafo de 22 anos, um ano mais velho que ela.
Fernanda estava na casa do irmão quando o produtor do filme Eu Sei que Vou Te Amar caiu no colo de uma senhora, em Cannes. Hélio Paulo Ferraz, o produtor, contou que deu o maior pulo da sua vida. Um pulo para o alto, com o punho cerrado, erguido, como Pelé ao comemorar seus gols. O diretor Sidney Pollack, Oscar de Melhor Direção deste ano por seu Out of Africa (Entre Dois Amores), presidente do júri do 39° Festival de Cannes, acabava de anunciar que Fernanda Torres foi considerada a melhor atriz do ano, dividindo o prêmio com a alemã Barbara Sukowa, que fez o papel da revolucionária marxista Rosa Luxemburgo no filme Rosa Luxemburgo, da cineasta Margarethe von Trotta. O pulo foi tão alto que Hélio Paulo Ferraz acabou caindo no colo da senhora que ocupava a cadeira ao lado da sua, no Palácio dos Festivais,
LONGE DE CANNES – Simone, a de olhos castanhos, e seu alter-ego Rosana Reis, a de olhos azuis, impediram que Fernanda Torres fosse receber das mãos de Sydney Pollack o prêmio de Melhor Atriz. Quem o recebeu foi Arnaldo Jabor, o diretor do filme Eu Sei que Vou Te Amar (ou Parle-Moi d’Amour, segundo a versão legendada vista em Cannes na sexta-feira, 9, e no sábado, 10, como o único representante brasileiro na mostra oficial). A grande dama do teatro brasileiro não achou isso justo: “Lamento”, disse Fernanda Montenegro, “que uma empresa do porte da Globo – que vai lucrar com o prêmio de Nandinha até mesmo para vender Selva de Pedra lá no estrangeiro não tenha enxergado que não tinha o direito de impedi-la de ir a Cannes receber seu prêmio”, proclamou a mãe de Nandinha, ela própria contratada da Globo, onde interpreta, às 19 horas, o papel de Leonarda na novela Cambalacho.
Nandinha – é assim que os parentes e amigos mais íntimos chamam Fernanda Torres – esteve em Cannes, mas apenas para assistir à apresentação de seu filme. E, mesmo assim, depois de uma discussão com o pessoal da Globo, segundo o depoimento do pai, Fernando Torres: “Ela voltou da Europa na quinta-feira (dia 16), gravou na sexta e no sábado. Só no domingo teve um dia de descanso”. Na segunda-feira de manhã ela estava de novo gravando as cenas como Rosana Reis e enfrentando o mal-estar provocado pelas lentes de contato. Um dia e um prêmio em Cannes depois, Fernanda Torres já parecia bem mais à vontade com as lentes de contato, com as quais teria que filmar 40 cenas de Selva de Pedra.
Nestes primeiros momentos depois de sua premiação, ela fez declarações assim:
- Foi melhor, o presente veio pelo telefone. Naquela confusão do festival, ficaria ouvindo boatos, ia dar dor de barriga. Não doeu, foi bom.
- É estranho. É esquisito. Cannes é muito grande, é imenso. É um mundo de pessoas e cada um tem uma opinião. Então um prêmio desses é uma coisa… uma coisa que vem cercada de uma batalha violenta. É política. Não sei como é isso. É muito doido. Sabe o que é você ir a Cannes e ganhar?
- No dia da exibição oficial, a sessão foi à meia-noite, e eu pensava: meu Deus, quem é que vai querer vir ao cinema à meia-noite para ver um filme brasileiro?
- Eu não entendo. Por que é que esse júri me escolheu? Que é que pode pensar de mim um cara como o Sydney Pollack? Talvez a presença de Sônia Braga no júri tenha influenciado para que meu nome fosse lembrado.
SEM FEITIÇO – Não influenciou. Foi o que a própria Sônia Braga disse: “Eu precisaria ser uma feiticeira, e não sou. Éramos dez no júri, e as decisões foram tomadas democraticamente, por maioria de votos. O que posso dizer é que não houve problema para a indicação de Fernanda. E a idéia nem foi minha”. Outro membro do júri, o cantor romântico Charles Aznavour, concordava: “Fizemos justiça e premiamos as duas melhores intérpretes do festival”.
Na verdade, Fernanda Torres é uma grande atriz. Essa é a opinião de diversos diretores e atores que já trabalharam com ela, em sua carreira já nem tão curta – ela começou quando tinha apenas 13 anos de idade, há oito anos, portanto – e intensa, que inclui experiências no teatro, na televisão e no cinema. Ela já surpreendia pelo talento quando estava no Souza Leão, um colégio da Zona Sul do Rio de Janeiro onde estudam muitos filhos de intelectuais e artistas. Era gorda, bochechuda, tinha a pele muito, muito branca, e usava laços de fita na cabeça, Não era tímida, mas sobressaía pela seriedade. Jamais repetiu um ano, mas, na verdade, matemática, português e ciências não eram o seu encanto. Destacava-se sobretudo na aula de teatro. “Eu sempre achei que ela era filha de peixe; tinha grilo com esse compromisso, mas mesmo assim foi à luta”, diz Carlos Wilson, o Damião, primeiro professor de teatro de Fernandinha no Souza Leão. O talento de Fernanda já era tão visível que Damião a levou rapidamente para o Tablado, a escola de Maria Clara Machado, onde se aprende técnica de improvisação teatral, e da qual ele era diretor. Por lá passaram muitos dos atores cariocas, como Marieta Severo, Cláudio Correia e Castro, Louise Cardoso e Rubens Corrêa; hoje o Tablado funciona como uma espécie de vitrine de talentos para a Rede Globo; de lá saíram Lauro Corona, Débora Bloch e Malu Mader, entre outros. Na época, a menina Nandinha teve como seus professores, entre outros, as atrizes Louise Cardoso e Sura Berdichevski.
Já na sua estréia, surpreendeu seus professores, ao fazer o papel de uma velha, dona de um cabaré, em Um Tango Argentino, de Maria Clara Machado, Estava, então, com 13 anos de idade. Hoje sua ex-professora Maria Clara diz: “Fernanda é uma atriz nata. Tenho muito orgulho dela. E se hoje Fernanda é uma grande atriz, é porque tem talento, não foi por causa do Tablado”.
Não foi também por causa dos pais famosos – isso a própria Fernanda faz questão de dizer. “Sou completamente independente deles”, ela disse ao repórter Miguel Angelo Filiage, de Afinal. “Não estou sendo bem-sucedida nesta profissão porque sou filha de grandes atores. As pessoas não te chamam para trabalhar simplesmente porque você é filho de gente famosa.” No caso de Fernanda, as pessoas a chamam para trabalhar porque vêem o seu trabalho. Arnaldo Jabor, que a dirigiu em Eu Sei que Vou Te Amar, por exemplo, a chamou depois de vê-la em Inocência, a estréia de Fernanda no cinema, em 1982. Mas naquela época ela já era quase uma veterana.
No mesmo ano de 1978, em que estreou no teatro com Um Tango Argentino, Fernanda chegou à televisão, fazendo o papel de filha de Dina Sfat em um episódio do seriado Aplauso; depois, apareceu também na novela Baila Comigo, de Manoel Carlos, na qual trabalhavam seus pais. Em 1981, foi aprovada nos testes para trabalhar em Brilhante, novela de Gilberto Braga, fazendo o papel da neta de Fernanda Montenegro. Trabalhou ainda em Eu Promero, de Janete Clair. Paralelamente à carreira na TV, não abandonava o teatro: participou, com Jonas Bloch, de uma montagem de Pequenos Burgueses, de Gorki, e trabalhou em Rei Lear, de Shakespeare, dirigida por Sérgio Britto. Mas Fernanda tem o dom da autocritica: “Acho que ainda não acertei em teatro”, ela disse. “De televisão eu gosto muito, mas o lugar onde eu me achei foi no cinema.”
LIGADA AO CINEMA – Depois da estréia no cinema fazendo o papel da jovenzinha do interior mineiro no século passado, imaginada por Visconde de Taunay e levada à tela com sensibilidade e bom gosto por Walter Lima Júnior, Fernanda Torres andou um tempo desligada da TV. Foi o período em que mais se ligou ao cinema, entre o final de 1984 e os primeiros meses de 1985, época em que fez três filmes. O primeiro deles foi A Marvada Carne, de André Klotzel, em que ela faz o papel de uma caipira, contrariando a opinião do pai – Fernando Torres achava que não ia dar certo ela, moça urbana, do Rio de Janeiro, interpretar uma capiau. Deu certo – e deu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado de 1985; o filme já foi vendido para 20 países, e por um desses insondáveis mistérios do mercado exibidor brasileiro, só este mês chegou às telas tupiniquins, quase ao mesmo tempo que o segundo filme feito por Fernanda naquela época, exatamente Eu Sei que Vou Te Amar, que Arnaldo Jabor define como um filme para ser visto, ou ouvido, ou apenas lido. A ação se passa inteiramente entre quatro paredes, na casa de um rapaz (Thales Pan Chacon), que conversa com a ex-mulher, (Fernanda), ambos incapazes de viver juntos e igualmente incapazes de se separar. É uma torrente de palavras – o que fazia Jabor comentar, após a exibição do seu filme em Cannes: “Ele não poderia ser visto como no Brasil, porque perde muito a força, por causa das legendas”.
Com Licença, Eu Vou à Luta, o terceiro filme que Fernanda fez naqueles meses e que ainda não tem data de estréia marcada, tem agora dois fortes motivos para dar boa bilheteria. Primeiro, a presença de Fernandinha no horário nobre, como a Simone e a Rosana Reis em Selva de Pedra, seu primeiro papel central em uma novela. Segundo, a premiação em Cannes e toda a publicidade que ela atraírá. Fernandinha merece essa consagração, acha a orgulhosa mamãe Fernanda Montenegro: “É um trabalho bonito. O prêmio foi justo”. E, com a experiência de quem é unanimemente considerada a maior atriz brasileira, avalia: ulo “É bonito ter a chance de ter, aos 21 anos, o reconhecimento de um trabalho bem-feito”.
Abril de 1986. Postado aqui em 6/1/2024, o dia em que Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz – drama por “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles.
Sem o seu texto, muitas pessoas nem se dão conta de todo “curriculum” da Nandinha.
Aprendi que inveja é pecado, mas impossível- como jornalista frustrada- não sentir inveja do seu texto.