Lula à sombra do velho discurso

Lula e PT retiraram do fundo do baú a velha e descolorida roupa da luta de classes, agora travestida no confronto ricos contra pobres. Ou do “andar da cobertura com o andar de baixo”, na definição do ministro da Fazenda Fernando Haddad. Na retórica de classes contra classes, a turma da cobertura seria o mercado financeiro, as elites econômicas e, de maneira especial, o “Congresso Conservador”.

No passado, Lula dizia existir 300 picaretas no parlamento, agora o discurso é reciclado para carimbar o Congresso como “inimigo do povo”. Na visão petista, os parlamentares bloqueiam os avanços sociais ao impor sucessivas derrotas ao governo e impedir o governo de fazer justiça tributária.

É como se o PT e Lula mergulhassem no túnel do tempo e voltassem ao discurso binário do “nós contra eles”, dos anos 80. Em vez de buscar a pacificação do país, apostam na escalada retórica, como forma de recuperar a popularidade perdida e de sair do isolamento, numa estratégia de curto prazo.

Visam sensibilizar as massas para emparedar o Congresso Nacional e assim aprovar projetos que Lula considera estratégicos para a sua reeleição. Ao assumirem a postura de um Robin Hood tupiniquim – tirar dos ricos para dar aos pobres – depositam esperança de finalmente o governo Lula ter uma marca, coisa que não conseguiram construir em dois anos e meio de mandato.

O giro à esquerda levou Lula a dobrar a aposta no seu confronto com o Congresso Nacional. O presidente decidiu recorrer ao STF para considerar inconstitucional a votação que derrubou o aumento do IOF. A judicialização do caso é mais gasolina na fogueira. Antes mesmo do seu anúncio o presidente da Câmara de Deputados, Hugo Motta, mandou um recado duríssimo ao governo, alertando-o sobre as consequências de ingressar com uma ação no STF. Não há como dourar a pílula. Esse gesto está sendo interpretado como uma evidência de que Lula “abriu mão de governar com os parlamentares e agora busca governar com o STF”.

O primeiro a se pintar para a guerra foi o ministro Haddad, ao declarar “é hora de vestir o uniforme do embate”. De fato, partiu para o confronto nos dias seguintes, dizendo-se ser ministro para enfrentar os 140 mil super-ricos. Lula tem incentivado seu ministro da Fazenda a endurecer o discurso e ele mesmo foi na mesma toada, em ato realizado na Favela Moinho, em São Paulo. O passo seguinte foi a ordem unida para a base petista partir para a briga nas redes sociais, onde proliferam hashtags com o slogan “congresso inimigo do povo”.

O risco de uma crise institucional envolvendo os três poderes da República é uma possibilidade real. Lula poderá ganhar no STF – o que não está dado – mas perderá a disputa política com o Congresso, agravando mais ainda seu problema de governabilidade. O presidente praticamente queimou as caravelas na sua relação com o Congresso, como se estivesse jogado a toalha de ter os partidos do “Centrão” em seu palanque eleitoral.

Optou por deixar de lado a mediação política e apelar diretamente às massas para aumentar seu cacife eleitoral. Lula acusa o Congresso de, com a votação do IOF, antecipar a disputa eleitoral, mas ele mesmo está dando enorme parcela de contribuição para essa antecipação.

Se há lições a serem tiradas de crises anteriores, talvez a mais importante seja a constatação de que governo nenhum consegue viabilizar seu programa contra Congresso. Tentativas de emparedamento tendem a surtir efeitos contrários, ainda mais quando se tenta encurralar o Parlamento pela “pressão das massas”. João Goulart tentou esse caminho. Se deu mal. As crises dos estertores dos governos de Collor e Dilma deveriam servir de alerta para Lula, sobre o risco da erosão de seu capital político e terminar o seu terceiro mandato isolado politicamente e de forma melancólica, em meio de um país em crise. O Lula 3 está com pinta do Dilma 2, na sua relação com sua base parlamentar e com o próprio Poder Legislativo. O esgarçamento de suas relações com os partidos do centrão com cargos ministeriais salta aos olhos.

O próprio ministro da Fazenda, ao tornar-se porta-voz da guinada à esquerda perde interlocução com o Congresso Nacional e com os agentes econômicos, a quem carimbou como a turma do andar de cima. O novo discurso do ministro soa como música nos ouvidos de uma militância petista que vinha pregando a estratégia do confronto já há algum tempo e desconfiava que Haddad estava contaminado por ideias “neoliberais”.

Quem antes o criticava, como os ministros Rui Costa e Gleisi Hoffman, agora é só elogio. Talvez por baixo do “uniforme do embate político” Haddad pretenda emergir como Plano B, caso Lula desista de ser candidato diante da possibilidade de uma derrota eleitoral que cairia mal em sua biografia política.

Resta conferir qual a aderência na sociedade do discurso pautado no choque classe contra classe. Não há dúvidas que foi muito bem recebido nas bolhas petistas, levando ao seu engajamento nas redes sociais. Para quem estava encurralado no canto do ringue, foi um alento. Mas daí concluir que terá o mesmo impacto de vinte ou trinta anos atrás vai uma enorme distância.

O retorno da política do “nós contra eles” — tal como formulada no paradigma clássico da luta de classes — enfrenta hoje uma sociedade profundamente fragmentada, com aspirações, identidades e pertencimentos muito mais diversos e difusos do que nos tempos do velho confronto entre burguesia x proletariado. Isso reduz consideravelmente as chances de sucesso de uma retórica simplista de antagonismo vertical.

O Brasil fabril, do qual Lula emergiu como liderança sindical e levou à sua ascensão ao poder no início do século, já não existe mais. Nem o trabalhador é o mesmo de tempos idos, bem como o anseio do sujeito periférico não é o do passado. Hoje ele é ao mesmo tempo trabalhador informal, empreendedor, evangélico, usuário de redes sociais, aspirante à classe média, e muitas vezes conservador nos costumes. A luta já não se dá apenas entre capital e trabalho, mas também envolve disputas por reconhecimento, mobilidade, consumo, segurança, identidade religiosa ou pertencimento moral.

A forma como as pessoas enxergam seu lugar no mundo está mais conectada à realização individual do que a projetos coletivos de transformação radical. Nesse contexto, falar em “luta contra os ricos” pode soar abstrato ou até contraproducente para quem quer se tornar um deles, ainda que simbolicamente.

Ao ressuscitar um discurso que tornou-se anacrônico diante de um mundo em intensas transformações, não percebe que, como cantava Belchior, o que era novo hoje é antigo e o passado é uma roupa que não nos serve mais.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 2/7/2025. 

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