Sem que eu tivesse escolhido, por acaso, ou mero descaso, como diria o jovem Chico, tocou “O Amanhã é Distante”, com Geraldinho Azevedo e Zé Ramalho – e, meu Deus do céu e também da terra, que canção maravilhosa, esplêndida, lindérrima…
Para mim, é uma das mais belas canções que já foram feitas.
Claro que isso aí é apenas uma opinião. Cada um tem a sua, e nenhuma opinião, em princípio, é melhor que qualquer outra.
Mas há um fato interessante sobre essa canção – um fato verdadeiro, irretorquível, inquestionável. Foi a única música de Bob Dylan que Elvis Presley gravou.
Não aprendi a gostar de Elvis. Não consegui compreender sua grandeza. Quando a morte dele completou exatos cinco anos, em agosto 1982, eu escrevia sobre música no Jornal da Tarde, e alguém da Variedades, não me lembro quem, cometeu a bobagem de me encomendar um texto sobre Elvis – e eu escrevi um texto idiota, antipático, preconceituoso, que começava assim: “Quando o corpo flácido, balofo, inchado, corroído por drogas e decadência, caiu no chão acarpetado do banheiro da mansão de 18 cômodos, há exatos cinco anos (ou seja, no dia 16 de agosto de 1977), Elvis Presley já estava, na verdade, morto há um bom tempo. Misericordiosa morte final – e extremamente lucrativa. Morto, Elvis Presley vendeu ainda mais discos do que nos primeiros anos de fama e glória, na época em que era jovem, bonito, sensual, voz maravilhosa, possante, forte, negra, para desespero dos mais velhos, dos conservadores, das ligas de decência, e para o absoluto prazer de milhões e milhões de jovens em todo o mundo.”
Argh, que porcaria de lead!
Mas não era sobre isso que eu queria falar neste suelto. Suelto é bom, mas o problema é que os dedinhos da gente se soltam demais diante do teclado. “Mas como é que a gente voa quando começa a cantar”.
A gravação de Elvis Presley de “Tomorrow is a Long Time” é uma coisa de beleza extraordinária, esplêndida, quase celestial.
E é fantástico, fascinante, louco pensar que “Tomorrow is a Long Time” não está em nenhum dos discos oficiais, gravados em estúdio, de Dylan.
Bem… Muito do que diz respeito ao cara não é mesmo muito lógico, normal, deste mundo. Diferentemente do eventual leitor e de mim, Bob Dylan não parece um terráqueo – parece um alienígena que um planeta de civilização mais desenvolvida mandou para tentar nos ensinar algumas verdades fundamentais.
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“Tomorrow is a Long Time” foi gravada pela primeira vez em 1965 por duas gigantes, Judy Collins, em seu Fifth Album, e Odetta, em seu Odetta Sings Dylan – o primeiro álbum só de músicas do compositor. Depois de Odetta Sings Dylan viriam diversos, diversos, diversos álbuns de artistas e/ou grupos só com covers de canções do compositor – mas a grande dama de voz única, possante, poderosa, foi a absoluta pioneira.
Naqueles primeiros anos, em especial, o cara compunha muito mais músicas do que seria possível colocar em um de seus discos – e então outros cantores se apropriavam daquelas não incluídas nos álbuns do próprio compositor. O livro Writing and Drawings by Bob Dylan, editado em 1973, coloca “Tomorrow is a Long Time” como uma das 14 (!!!) canções compostas entre o segundo e o terceiro álbuns do artista, The Freewheelin’ Bob Dylan, de 1963, e The Times They Are A-Changin’, de 1964, quando ele estava respectivamente com 22 e 23 anos de idade.
Só haveria uma gravação da música com o próprio Dylan na caixa-coletânea The Bootleg Series, Vol. 9: The Witmark Demos 1962-1964, lançada em 2010. Como o título esclarece, são gravações demo daquele inicinho de carreira do compositor, feitas apenas para que a empresa pudesse registrar as obras para efeito de garantia dos direitos autorais.
Pois é, mas estes últimos parágrafos estão só informativos, quase como se eu estivesse tentando fazer um verbete na Wikipedia. Diacho, o que eu queria fazer era um suelto.
Acho que eu queria mesmo dizer é que, quando tocou “O Amanhã é Distante”, com Geraldinho Azevedo e Zé Ramalho, me lembrei do adolescente Sérgio Vaz em Curitiba, ali por 1966 ou 1967, quando ficou conhecendo o LP Odetta Sings Dylan.
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Naquela minha distante encadernação, passei dois anos, exatamente 1966 e 1967, em “Curitiba, a fria, em que Jânio Quadros comia moscas”. (Este foi o título de um texto publicado naquela época na Revista da Civilização Brasileira, tá? Não tenho nada a ver com isso…) Fiz o segundo e o terceiro anos do colegial no Colégio Estadual do Paraná, aquele predião imponente na João Gualberto, perto do Passeio Público, e estudei inglês no ICBEU, Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos. Não me lembro exatamente como, mas consegui uma vaga de funcionário na secretaria da escola, o que me garantiu bolsa integral.
O ICBEU tinha uma biblioteca e também uma discoteca, no sentido primeiro da palavra: emprestava aos alunos livros e discos. Foi lá que descobri o LP Odetta Sings Dylan, e aluguei-o várias, várias, várias vezes.
Ouvíamos o disco no equipamento Phillips simplesinho na casa da Rua Padre Oswaldo Gomes, onde morávamos Geraldo, Jorge e eu, depois que minha mãe havia se mudado para São Paulo.
Após alguns meses na secretaria do ICBEU, veio o segundo trabalho remunerado que tive na vida, como mezzo office-boy, mezzo secretário do senhor Vojtech Rona, que trabalhava com importação e exportação e tinha o escritório na sua própria casa, um belo lugar, no Alto da Rua XV.
Seu Rona, como todos os chamavam, era um húngaro educadíssimo, culto, aficionado por literatura e música erudita, e tinha um imponente, fantástico, maravilhoso sistema de som que me fazia babar. Um dia lá tomei coragem e pedi a ele se poderia me fazer o favor de tocar o LP Odetta Sings Dylan no som dele. Seu Rona nem piscou. Fez a vontade do fedelho e ouviu comigo o disco pego na biblioteca do ICBEU da cantora negra só com músicas do jovem judeu radical.
Não saberia dizer hoje, tantas décadas depois, se Seu Rona gostou de ouvir “Tomorrow is a Long Way” – mas, diabo, aquele adolescente lá seguramente teve um dos grandes prazeres da vida.
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Traduzir não é uma tarefa fácil, de forma alguma. Sequer traduzir um diálogo simples de um filme. Dos romances, se diz aquela coisa: traduttore, traditore.
Pouquíssima gente se aventurou a fazer tradução/versão de canções de Dylan para o português. Caetano e Péricles Cavalcanti, juntos, fizeram uma beleza de trabalho convertendo “It’s All Over Now, Baby Blue” em “Negro Amor”, para a Gal cantar no disco Caras & Bocas, de 1977. Sempre achei uma maravilha como eles conseguiram transpor para o português até mesmo a aliteração de “all your seasick sailors” no verso “seus marinheiros mareados abandonam o mar”.
Os nordestinos, danados, não tiveram dúvidas: mandaram brasa. Fausto Nilo criou uma maravilhosa “Romance no Deserto” para “Romance em Durango”. E Geraldinho Azevedo e Babal assinam a versão-tradução que transforma “Tomorrow is a Long Time” em “O Amanhã é Distante”.
Uma beleza de tradução. Fiel ao espírito da poesia original, e ao mesmo tempo absolutamente criada no português, sem procurar literalidade que deixaria os versos menos belos.
Aí abaixo vão as duas letras – mas, diacho, letra sem música, por mais linda que seja, não é tão bela quanto cantada. Então, logo abaixo das letras, a original e a nordestina, vão mais dois links para a canção…
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Tomorrow is a Long Time
(Bob Dylan)
If today was not a crooked highway
If tonight was not a crooked trail
If tomorrow wasn’t such a long time
Then lonesome would mean nothing to you at all
Yes, and only if my own true love was waiting
And if I could hear her heart a-softly poundin’
Yes, and only if she was lyin’ by me
Then I’d lie in my bed once again
I can’t see my reflection in the water
I can’t speak the sounds that show no pain
I can’t hear the echo of my footsteps
Or remember the sounds of my own name
Yes, and only if my own true love was waiting
And if I could only hear her heart a-softly poundin’
Yes, and only if she was lyin’ by me
Then I’d lie in my bed once again
There’s beauty in the silver, singin’ river
There’s beauty in that rainbow in the sky
But none of these and nothing else can touch the beauty
That I remember in my true love’s eyes
Yes, and only if my own true love was waiting
I could only hear her heart a-softly pounding
Yes, and only if she was lyin’ by me
Then I’d lie in my bed once again
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O Amanhã é Distante
(Bob Dylan, versão Geraldo Azevedo-Babal)
E se hoje não fosse essa estrada
Se a noite não tivesse tanto atalho
O amanhã não fosse tão distante
Solidão seria nada pra você
Se ao menos o meu amor estivesse aqui
E eu pudesse ouvir o seu coração
Se ao menos mentisse ao meu lado
Estaria em minha cama outra vez
Meu reflexo não consigo ver na água
Nem fazer canções sem nenhuma dor
Nem ouvir o eco dos meus passos
Nem lembrar meu nome quando alguém chamou
Se ao menos o meu amor estivesse aqui
E eu pudesse ouvir o seu coração
Se ao menos mentisse ao meu lado
Estaria em minha cama outra vez
A beleza no rio do meu canto
A beleza em tudo o que há no céu
Porém nada com certeza é mais bonito
Quando lembro dos olhos do meu bem
Se ao menos o meu amor estivesse aqui
E eu pudesse ouvir o seu coração
Se ao menos mentisse ao meu lado
Estaria em minha cama outra vez
Se ao menos o meu amor estivesse aqui
E eu pudesse ouvir o seu coração
Se ao menos mentisse ao meu lado
Estaria em minha cama outra vez
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11 e 12/8/2025