Ora vejam! Muitos fuzis do Comando Vermelho apreendidos na última chacina — ao todo foram quase cem — não vieram de contrabando nas fronteiras, portos e aeroportos. Não vieram do exterior. Caíram do céu? Vieram de onde, homessa?
Vieram daqui mesmo, pessoal! Vieram de fábricas clandestinas localizadas debaixo do nariz de dois governadores que foram os primeiros a saracotear apoio ao necropolítico que ocupa o Palácio Guanabara. As duas fábricas juntas tinham capacidade para produzir mais de 2 mil fuzis por ano. E de alta qualidade, feitos com instrumental de máxima precisão.
Os dois governantes atendem pelos epítetos de Tarcínico Bosófico de Freitas e Romeu “Eu Ovo Muito Bem” Zema, respectivamente de São Paulo e Minas Gerais, supostos pretendentes ao espólio político do pré-presidiário Jair Pastonaro, assim chamado por fazer uso do pastorado evangélico para subir na vida, num patamar muito acima do que prometiam as milícias da região de Rio das Pedras, outrora reduto de pescadores de caranguejos pra lá da zona sul do Rio de Janeiro, junto à Barra da Tijuca.
Os dois governantes ficaram subitamente quietos e mudos, após o alarido, deles e de outros da extrema direita, em favor da matança a mando do colega carioca. Depois que enchem a pança, os porcos dormem. Mas nesse caso, dormitam para sumir do mapa.
As fábricas clandestinas funcionavam a todo vapor. Foram descobertas pela Polícia Federal, uma delas dentro de uma fábrica de peças aeronáuticas, em Santa Bárbara d’Oeste-SP, e outra que fabricava móveis em Minas Gerais.
Tanto as peças aeronáuticas quanto os móveis eram despistes. O que importava fabricar ali eram fuzis do tipo AR-15, usinados na calada da noite, para não dar na vista. A produção era exportada para o crime organizado do Rio de Janeiro e do Nordeste.
A grande mídia também fechou a boca. Deu uma vez e nada mais. Alguém nas Receitas Estaduais dos dois estados da Federação pode ter feito vista grossa para a atividade extra curricular — como há poucos dias se descobriu, em outro caso cabeludo, em São Paulo. Este deu prejuízo, calculado em 2 bilhões de reais, em tributos sonegados aos cofres do erário paulista. Seus beneficiários eram auditores da Receita Estadual que aproveitaram a redução de controles adotada pelo governador Tarcínico — em nome da ideologia liberal, digamos assim — para deitar e rolar.
Fábricas clandestinas de armamento não podem passar em brancas nuvens pela fiscalização dos órgãos do Estado — polícia, Forças Armadas, judiciário e Receitas estaduais e municipais. Alguém acredita que só existam no país essas duas fábricas clandestinas agora descobertas?
Segurança pública é um terreno minado para a esquerda e de areia movediça para a direita. No entanto, se a esquerda pisa em ovos sobre o terreno, a direita não se incomoda em afundar-se na lama, pensando ir adiante.
Afinal, matar bandido dá votos na classe média, mesmo que o crime continue ainda mais violento do que antes. E dá lucro também, a supostos “empresários” que depois vão contribuir a rodo para as candidaturas da extrema direita. É um dando a mão para o outro.
A escalada da criminalidade no Rio de Janeiro é mais que suficiente para comprovar isso. O combate ao crime só com a polícia não acabou com o crime. Pelo contrário, o crime ficou mais forte, com armamento mais pesado e em grande quantidade, avançou sobra as instituições do Estado e hoje tem poder sobre o Palácio Guanabara, a Assembleia Legislativa, a Prefeitura, a Câmara de Vereadores, a Polícia Militar, a Polícia Civil e até mesmo o Ministério Público e o Judiciário.
Eu morava lá quando o governador Leonel Brizola proibiu a polícia de subir nos morros. Década de 80 do século passado. Foi uma medida acertada, porque a polícia só subia o morro para matar. Brizola instalou serviços públicos nas comunidades, como agências do Banerj, postos de saúde e Cieps. Com as instalações, inclusive um teleférico (plano inclinado) no Pavão-Pavãozinho, a onda reverteu: o crime não dava mais as cartas e sua onipresença na vida da comunidade refluiu.
Durou pouco, é verdade. O crime logo encontrou outras fontes de renda, além dos gatos de luz e telefone, para subornar a polícia e comerciantes. Criou as vans para transporte alternativo, criou o serviço de entrega expressa de drogas, passou a distribuir cestas básicas para o morro, etc.
Brizola não quis fazer política pública de segurança só com a polícia, e estava certo. As crianças passaram a ter escola em tempo integral nos Cieps, planejados e executados por Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer. Não eram construções pequenas e baratas — como as brizoletas que construiu por todo o Rio Grande Sul quando foi governador —, mas grandes, algumas monumentais, com quadras esportivas e alojamento para alunos em situação de risco. Brizola e Darcy respondiam aos críticos que mais caro é o crime.
Brizola e Darcy já se foram. Deixaram um modelo que com o tempo foi perdendo as virtudes originais. O sistema de ensino em tempo integral está quase extinto. Poucos Cieps ainda o mantém. Mas milhares de crianças se educaram neles. Milhares de famílias tiveram onde deixar seus filhos durante o dia em segurança, para que um dia fossem alguém na vida.
O modelo de ensino original refluiu. O governo Lula tenta mantê-los vivos e há muitos espalhados pelo país, mas a grande maioria funcionando por turnos, não mais em tempo integral.
O crime e a direita venceram, nos governos seguintes ao de Brizola. Sem o crime, a direita é nada. Com o crime, a direita prospera.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e observador de outros tempos.
12/11/2025
