Fux votou contra tudo – até contra Fux

O voto do ministro Luiz Fux no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete acusados de liderar a trama golpista, nesta quarta-feira, 10 de setembro de 2025, tem tudo para entrar para a História como um dos episódios mais inacreditáveis – e mais vergonhosos – destes 525 anos de Brasil.

Por vários motivos. Como – para citar apenas dois aspectos, bem en passant – o absurdo que é defender a nulidade de todo o processo, por entender que o Supremo Tribunal Federal é incompetente para julgar a ação penal, e, ao mesmo tempo, votar pela inocência de Bolsonaro e de outros cinco réus. Defender a nulidade de todo o processo e, ao mesmo tempo, pedir a condenação do réu delator, o ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid, além da do general Braga Netto.

São decisões que se contrapõem uma à outra. Que negam uma à outra.

Além da absoluta falta de lógica que é condenar o ajudante de ordens e inocentar quem dava a ordens para o ajudante.

Há um tanto de verdade no que diz Vera Magalhães na abertura de seu artigo no Globo desta sexta-feira, 12: “Após a condenação de Jair Bolsonaro e outros sete réus por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes contra a democracia, o longo voto de Luiz Fux era notícia velha e superada”.

Ela mesma, no entanto, em seu artigo, volta a falar sobre o voto de Fux – enfatizando um ponto importante, que Mary já havia comentado comigo enquanto Fux ainda falava sem parar na quarta-feira: “O dissenso aberto por Fux (…) funcionou como comprovação, perante o mundo, de que a independência do Poder Judiciário está plenamente preservada e permite escrutínios diferentes do mesmo conjunto probatório por parte de diferentes magistrados”.

Logo depois da sentença, da condenação, o voto de Fux de fato parece notícia velha e superada. Mas tenho certeza de que ainda vai se falar muito, nos próximos dias, nas próximas semanas, nos próximos anos, sobre os absurdos do voto-maratona, que durou quase dez horas consecutivas, tirando os intervalos para que os ministros se alimentassem e fossem ao banheiro. Analistas, juristas e historiadores vão estudar a fundo os problemas, as contradições, a falta de lógica do voto-maratona – e seus efeitos, já que o voto dará argumentação para as defesas dos golpistas tanto no próprio STF quanto em tribunais internacionais e também para o bolsonarismo.

Será necessário tentar encontrar explicações para a existência daquele arrazoado inacreditável.

Mas o ponto que eu gostaria de salientar aqui é a incoerência entre o que disse Fux no seu voto e o que dizia Fux nos meses que antecederam o dia 10 de setembro de 2025.

Em seu voto, Fux não agrediu apenas a lógica, o bom senso, a razão. Ele agrediu o Fux que existia até então. Como sintetizou com brilhantismo o título de um dos comentários de Miriam Leitão no site do Globo, às 12h18 da quarta-feira, quando Fux apenas começava a apresentar seu voto que só terminaria por volta das 23h: “Fux não vota contra Alexandre ou Gonet, vota contra ele mesmo. É Fux versus Fux”.

Diz ela:

“O ministro Luiz Fux votou pela condenação da maioria dos que foram apenados pelos atos de 8 de janeiro. Agora está votando de maneira oposta ao que ele mesmo votou.

“Primeiro, acatou todas as preliminares dizendo que o STF não era o foro adequado, e por isso declarou a incompetência absoluta do processo. Depois, votou pela nulidade da própria ação penal, julgando que houve cerceamento de defesa por excesso de documentos e pouco prazo para analisar. Depois avaliou como improcedente o crime de organização criminosa. E por fim, acha que os dois crimes, golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito são o mesmo tipo penal.

“Nada disso ele havia considerado quando julgou, e ajudou a condenar, pessoas desconhecidas que atacaram os prédios dos Três Poderes.”

Eu me apropriaria dessa sacada da Míriam Leitão e acrescentaria que Luiz Fux não votou “apenas” contra Alexandre de Moraes, contra o procurador-geral Paulo Gonet, contra Carmen Lúcia, contra Flávio Dino, contra Cristiano Zanin, contra a lógica, contra a razão, contra o bom senso, contra as provas apresentadas nos autos do processo – ele votou contra tudo. Até mesmo contra Luiz Fux.

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Na página 3 do Globo da quinta-feira, 9/11, o histórico dia da condenação de Jair Bolsonaro e dos sete outros réus, dois belos artigos foram fundo ao demonstrar a absurda distância entre o Fux de antes desta semana e o Fux do voto-maratona.

Malu Gaspar lembra, por exemplo, que como presidente do STF, em 2022 “Fux fez um duro pronunciamento afirmando que ‘ofender a honra dos ministros, incitar a população a propagar discursos de ódio contra a instituição e incentivar o descumprimento de decisões judiciais são práticas antidemocráticas e ilícitas, intoleráveis’.

Agora, no entanto, ele diz que “entrevistas e discursos não são crimes, ainda que sejam rudes”, e o máximo que aconteceu nos estertores do governo Bolsonaro “foi a mera cogitação de um golpe, que não merece punição”.

E Julia Duailibi lembra que, em 14 de setembro de 2023 – apenas dois anos atrás! –, durante o julgamento de Aécio Lúcio Costa Pereira, um dos terroristas-vândalos que invadiram as sedes dos Três Poderes da República em 8 de janeiro, Luiz Fux foi um dos sete ministros do Supremo que votaram com Moraes pela condenação do réu:

– “O momento é trágico [por] termos que nos debruçar num caso tão dramático quanto este à democracia brasileira. Eu estou acompanhando integralmente o voto do eminente ministro Alexandre Moraes”, disse Fux.

E então Julia Duailibi escreve: “Ontem, ao revisitar o 8 de Janeiro, com um elenco diferente no banco dos réus, Fux adotou visão bem mais tolerante. (…) As graves ameaças apontadas pela acusação e pelo relator no processo contra os mandantes da trama golpista se transformaram em ‘choro de perdedor’, ‘bravatas’ ou ‘mera irresignação’. Da minuta do golpe ao depoimento dos comandantes das Forças Armadas, Fux questionou uma a uma as provas da Procuradoria-Geral da República (PGR), principalmente as acusações contra o ex-presidente Bolsonaro. O rigor com o réu de outrora encontrou agora a PGR — e, na prática, o voto do relator — como alvo.”

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Será que algum dia ficaremos sabendo o que foi que fez Luiz Fux mudar tanto, no curtíssimo período de apenas um ano?

Não terá sido, evidentemente, o medo de – por causa da Lei Magnitski – ser proibido de comprar perucas estrangeiras, como disseram más línguas nas redes sociais…

Seguem-se as íntegras dos dois artigos. Fico feliz por poder registrá-los aqui. São documentos históricos. (Sérgio Vaz)

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Julgamento de Bolsonaro inaugura 2026

Por Malu Gaspar, O Globo, 11/98/2025

A perplexidade geral com o voto do ministro Luiz Fux no julgamento da trama golpista ainda renderá muita discussão sobre o que aconteceu desde a madrugada de 7 de setembro de 2021, que ele atravessou insone na sede do Supremo Tribunal Federal (STF), até a noite de ontem, quando votou para absolver Jair Bolsonaro de todos os crimes de que é acusado.

Lá atrás, como presidente do STF, Fux fez um duro pronunciamento afirmando que “ofender a honra dos ministros, incitar a população a propagar discursos de ódio contra a instituição e incentivar o descumprimento de decisões judiciais são práticas antidemocráticas e ilícitas, intoleráveis”.

Agora, para ele, “entrevistas e discursos não são crimes, ainda que sejam rudes”, e o máximo que aconteceu nos estertores do governo Bolsonaro foi a mera cogitação de um golpe, que não merece punição.

Será difícil também entender como o Fux de ontem se coaduna com o de setembro de 2023, que acompanhou o voto do relator Alexandre de Moraes pela condenação no julgamento do primeiro réu do 8 de Janeiro — Aécio Lúcio Costa Pereira, que, segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), participou dos ataques às sedes dos três Poderes — e concordou com a pena de 17 anos de prisão por associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça com substância inflamável contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

Independentemente do diagnóstico sobre a transmutação de Fux, é certo que ele jogou combustível na fogueira de um julgamento que, embora se soubesse ser histórico, até então parecia ser um repeteco da avaliação da denúncia, com divergências menores num contexto dominado pela posição de Moraes e pelo consenso em torno da condenação dos réus.

Em seu voto, Fux abraçou teses em que nem a defesa de Bolsonaro se animou a insistir — como aquela segundo a qual o ex-presidente, na verdade, nunca quis nem sugeriu que se tentasse um golpe de Estado para impedir a posse de Lula. E, ao incorporar totalmente a narrativa do bolsonarismo sobre o que se deu nos últimos meses de 2022, ainda lançou no plenário da Primeira Turma do Supremo todos os elementos históricos que nos trouxeram até aqui.

Do inconformismo com as decisões da Corte no mensalão e na Operação Lava-Jato à ideia de que Bolsonaro teve tanta culpa do golpismo quanto Lula na facada perpetrada por Adélio Bispo durante a campanha de 2018, passando pelo embate entre liberdade de expressão e a “ditadura do Judiciário” e pela comparação do 8 de Janeiro com as manifestações de junho de 2013, estava tudo lá.

Para além da profusão de citações a teorias e juristas daqui e do exterior, o que coruscava ao fim da sessão era a armadura de herói da direita, que o bolsonarismo fez questão de promover nas redes sociais.

Embora muito provavelmente Fux vá ser vencido ao final, as nulidades e a absolvição defendidas por ele preparam o terreno para uma virada jurídica nos moldes da operada em 2021 pelo mesmo Supremo para enterrar as condenações da Lava-Jato. Se vingará, é difícil prever, mas também não convém duvidar.

Para completar, aos argumentos de Fux fatalmente se seguirá uma resposta de Moraes, que também encarna há tempos o avatar de herói da democracia e da esquerda e que dificilmente será uma contradita ligeira, suave ou circunscrita a argumentos técnicos ou a apenas esta fase do processo da trama golpista. Daqui para a frente, qualquer decisão ligada ao caso, que ainda tem mais quatro grupos de acusados para ser julgados, reprisará o embate entre os polos representados por Moraes e Fux.

Depois do que se viu ontem, ficou para trás qualquer esperança de um debate produtivo sobre as questões que realmente deveriam ter sido enfrentadas para levar o Supremo ao comedimento necessário — como o excesso de decisões monocráticas, os inquéritos intermináveis ou a normalização do juiz que é vítima, investiga, relata e condena num mesmo processo.

Agora, tudo isso fica subordinado à guerra dos tronos do Judiciário. O Supremo passa a ser o palco das decisões — e não nos enganemos, das articulações — que formarão o tabuleiro das eleições de 2026. E nós, condenados a viver mais uma campanha marcada por extremismos de todo tipo.

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O neogarantista Luiz Fux

Por Julia Duailibi, O Globo, 11/9/2026

Na manhã de 14 de setembro de 2023, os ministros do Supremo deram início ao primeiro julgamento da tentativa de golpe de Estado do 8 de Janeiro. No banco dos réus, Aécio Lúcio Costa Pereira, de 51 anos, que havia invadido o Congresso e se sentado na cadeira do presidente do Senado.

— Quem não acreditou, tamo aqui — disse Pereira. Assim como centenas de acusados, ele filmou e postou o próprio crime.

O ministro relator, Alexandre de Moraes, propôs a prisão por dano qualificado, deterioração de patrimônio público tombado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e associação criminosa. Pereira era um servidor da companhia de água e esgoto de São Paulo. Foi condenado a 17 anos de reclusão, com 15 anos e seis meses em regime fechado.

Sete ministros do Supremo votaram com Moraes pela condenação, entre os quais Luiz Fux, para quem o relator atuou com “extremo critério” e não deixou dúvida sobre a “autoria” e a “materialidade” dos crimes em questão. Fux acompanhou, integralmente, o relator.

— O momento é trágico [por] termos que nos debruçar num caso tão dramático quanto este à democracia brasileira. Eu estou acompanhando integralmente o voto do eminente ministro Alexandre Moraes — disse Fux, para quem o réu atuara até com certa “euforia canina”.

Ontem, ao revisitar o 8 de Janeiro, com um elenco diferente no banco dos réus, Fux adotou visão bem mais tolerante e distinta da “euforia canina” identificada por ele em 2023. As graves ameaças apontadas pela acusação e pelo relator no processo contra os mandantes da trama golpista se transformaram em “choro de perdedor”, “bravatas” ou “mera irresignação”. Da minuta do golpe ao depoimento dos comandantes das Forças Armadas, Fux questionou uma a uma as provas da Procuradoria-Geral da República (PGR), principalmente as acusações contra o ex-presidente Bolsonaro. O rigor com o réu de outrora encontrou agora a PGR — e, na prática, o voto do relator — como alvo.

Fux tinha bons pontos nas questões processuais. O mais importante: o caso de Bolsonaro não deveria ser julgado pela Primeira Turma, mas pelo plenário, onde foram condenados Aécio Lúcio Costa Pereira e outros executores. A regra mudou em cima da hora, e Bolsonaro é julgado hoje pelos cinco ministros da turma, onde as divergências, pensava-se, seriam menores. A mudança da regra do jogo com a bola em campo foi ruim para o Supremo.

Mas a análise do mérito das acusações feita por Fux eclipsou totalmente a importante questão preliminar levantada por ele. Fux, apontado pelos pares como um dos que menos concediam habeas corpus, mostrou-se um exímio garantista. Os posicionamentos causaram surpresa no mundo jurídico e agora, independentemente do desfecho, servirão de combustível político ao que Bolsonaro mais almeja: a aprovação da anistia no Congresso.

— Ao fim e ao cabo, verificando que muitos estavam passando dos limites, destaquei que ninguém, ninguém fecharia o Supremo Tribunal Federal. E hoje estamos aqui julgando este caso extremamente gravoso para a história da democracia brasileira — disse Fux.

O de setembro de 2023. Versão bem diferente da 2025.

12/9/2025

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