Depois de 20 anos termina o poder do Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo Morales. Pela primeira vez em duas décadas a esquerda ficará de fora da disputa da presidência da Bolívia, na qual o segundo turno será disputado entre um candidato de centro-direita e outro de direita. A simbologia da derrota transcende as fronteiras da Bolívia. Representa uma espécie de pá de cal em um projeto que galvanizou corações e mentes na América do Sul e levou a esquerda a subir no poder na Venezuela, Equador, Argentina, Bolívia e Brasil, conhecido como bolivarianismo e chamado por seu fundador, Hugo Chàvez, de “socialismo do século XXI”.
Encerra-se, assim, um ciclo no qual a esquerda, com seus variados tons, foi hegemônica entre os países sul-americanos, naquilo que ficou conhecido como a “onda rosa” no continente. A idéia de reviver o sonho de Simon Bolivar ganharia corpo com a criação da União das Nações Sul-Americanas – Unasul, em 2008, que nascia com a pretensão de construir uma identidade sul-americana e reduzir a dependência da Organização dos Estados Americanos (OEA), vista como alinhada aos Estados Unidos.
Em comum aos governos da onda rosa, um forte viés antiamericano e terceiro-mundista. Mas havia matizes diferentes entre eles. De maneira simplificada, poderiam ser divididos em dois blocos: países pautados pelo “progressismo moderado” – Brasil, Argentina, Chile e Uruguai – e países mais identificados com o projeto do “socialismo do século XXI” – Venezuela, Equador e Bolívia. Nesse perfil se enquadrava também a Nicarágua, que não faz parte da América do Sul.
Enquanto os primeiros se mantiveram nos marcos do ordenamento democrático – respeitando a alternância do poder e não alterando as regras constitucionais -, Venezuela de Hugo Chávez/Maduro, Nicarágua de Daniel Ortega, Equador de Rafael Correa e Bolívia de Evo Morales, trilharam o caminho do autoritarismo, alterando a Constituição com vistas a se manterem no poder. Esses países eram membros da ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América, criada em 2004 por Hugo Chávez e Fidel Castro) como alternativa à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), proposta pelos Estados Unidos.
O auge da onda rosa ocorreu entre 2006 e 2013, impulsionada pelo boom das commodities. O petróleo, o gás, a soja e os minérios financiaram políticas sociais com a diminuição da pobreza e a expansão da classe média e do consumo.
Mas a prosperidade mostrou-se frágil. A queda dos preços das commodities a partir de 2013 reduziu drasticamente as receitas dos Estados. O que antes era abundância se transformou em déficits fiscais e inflação. Ao mesmo tempo, as sociedades mudaram. A nova classe média, já não satisfeita apenas com transferências de renda, passou a exigir serviços públicos de qualidade, mobilidade urbana e segurança. As ruas se encheram de protestos: estudantes no Chile em 2011, jovens no Brasil em 2013, opositores na Venezuela em 2014, trabalhadores no Equador em 2015. O que era um ciclo de entusiasmo converteu-se em ondas de contestação.
O paradoxo é claro: milhões de pessoas saíram da pobreza graças a políticas de transferência de renda financiadas por matérias-primas em alta no mercado internacional. Mas, passada a bonança, os países da região voltaram à sua condição estrutural de dependência, vulneráveis às oscilações de preço determinadas por fatores externos. O que parecia um caminho para a autonomia revelou-se uma engrenagem de reprodução do velho padrão.
Essa falta de modernização não se restringe à economia. Com exceção de Gabriel Boric no Chile e Gustavo Petro na Colômbia — cujas agendas, embora de esquerda, distanciam-se do bolivarianismo por adotarem pautas de defesa institucional e compromissos democráticos —, a maior parte dos governos latino-americanos insistiu em lideranças carismáticas, caudilhescas e centralizadoras, pouco abertas à renovação de quadros e à incorporação de novas pautas sociais, ambientais e tecnológicas. Enquanto o mundo discutia transição energética, digitalização e novas formas de trabalho, grande parte desses governos permanecia ancorada em uma visão extrativista e distributiva, sem apostar em inovação produtiva de longo prazo.
O resultado foi a perda de conexão com parcelas crescentes da sociedade, sobretudo jovens urbanos, que passaram a enxergar a esquerda como guardiã de um modelo gasto, incapaz de oferecer perspectivas de futuro.
A eleição de Javier Milei na Argentina pode ser lida como um marco dessa mudança de era. Sua ascensão fulminante refletiu o esgotamento do modelo kirchnerista — uma variante do populismo de esquerda centrado na captura estatal, no clientelismo e na exploração eleitoral do ressentimento. Ao canalizar a revolta de amplos setores da sociedade contra o colapso econômico e moral do peronismo, Milei confirmou que o pêndulo político da região se move em outra direção.
Outro fator que reconfigura o campo na América Latina é a crescente influência dos valores evangélicos na política. A retórica da prosperidade, o moralismo comportamental e a ênfase na autoridade espiritual passaram a ocupar o lugar outrora preenchido pela promessa redentora da revolução. Essa substituição de imaginários populares enfraqueceu o apelo do bolivarianismo junto às camadas sociais que hoje se mobilizam sob novas linguagens, por vezes reacionárias, mas emocionalmente eficazes.
A derrota do Movimento ao Socialismo na Bolívia simboliza, assim, o fim de um ciclo. O partido que representou a ascensão indígena-popular e que parecia ter encontrado um modelo próprio de estabilidade perdeu a capacidade de se renovar. Sua queda não apaga conquistas inscritas na Constituição de 2009 ou a redução da pobreza, mas evidencia que o bolivarianismo já não é motor da política continental.
Isso não significa a morte da esquerda na região, mas o fim de uma era. O desafio, daqui para frente, será reinventar o progressismo latino-americano em bases diferentes: mais plural, mais atento às demandas sociais contemporâneas e menos dependente do personalismo e das conjunturas externas.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 3/9/2025.
