A casa da família de Cristina costumava receber sempre visitantes ilustres – intelectuais, professores, compositores, entre eles o carioca Vinicius de Moraes, o que escreveu que São Paulo é o túmulo do samba, e o paulistano Paulo Vanzolini, colega do pai dela na USP, zoólogo e um dos maiores compositores de samba que já houve. Foi do amigo do pai a primeira música que ela gravou, em um disco de 1967, quando ainda não tinha feito 17 anos – nasceu em dezembro de 1950, em São Paulo.
A canção era “Chorava no meio da rua”, aquela beleza que começa assim: “Você diz que eu choro escondido / Ai, meu Deus, que ingenuidade a sua / Se eu tivesse que chorar / Chorava no meio da rua”.
O disco era Onze Sambas e uma Capoeira, o primeiro só com composições de Vanzolini, cantadas também por Adauto Santos, Mauricy Moura, Luiz Carlos Paraná, Cláudia Morena e o irmão já então famoso Chico – que teve o privilégio de cantar duas obras-primas, “Samba erudito” e “Praça Clóvis”. Entre as duas que Mauricy Moura gravou estava “Volta por cima”, que havia sido sucesso com Noite Ilustrada – e, por coincidência, é o título e tema de novela da Rede Globo neste mês de abril de 2025, em que Cristina levou sua voz pequena, gostosa, simpática e afinadíssima para cantar para os anjos.
Era bem precoce a garota, filha caçula dos sete que Maria Amélia e Sérgio Buarque de Hollanda tiveram. Como registra a Enciclopédia da Música Brasileira, por volta de 1965 – antes, portanto, de completar 15 anos –, ela formou um quarteto vocal com as irmãs Ana Maria, mais tarde famosa como Ana de Hollanda, e Maria do Carmo, e a amiga Helena. O quarteto se apresentou em shows em colégios paulistanos e até em alguns programas de televisão.
Em 1968, Cristina comoveu o adolescente Sérgio Vaz, alguns meses só mais velho que ela – e seguramente outros milhares e milhares de adolescentes, adultos e velhos Brasil afora – cantando, em dueto com o irmão, no terceiro disco dele, a beleza absurda que é “Sem Fantasia”, que Chico havia composto para sua terceira incursão pelo teatro, depois de musicar os versos de João Cabral de Mello Neto em Morte e Vida Severina e criar as canções para a peça O&A, também para o grupo do Tuca, o teatro da PUC de São Paulo. Não há como esquecer os versos que Marieta Severo cantou no Teatro Ruth Escobar e Cristina gravou abrindo a faixa em que depois cruzava sua voz com a do irmão, cada um cantando um trecho da letra: “Vem, meu menino vadio / Vem, sem mentir pra você / Vem, mas vem sem fantasia / Que da noite pro dia / Você não vai crescer”.
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Cada uma das três filhas de Maria Amélia e Sérgio Buarque de Hollanda que fizeram carreira como cantora teve, é claro, sua própria identidade, estrada, caminhada. Miúcha talvez tenha sido, das três, a mais famosa; Ana teve a vida e a carreira marcadas por um firme posicionamento político. Cristina foi a que mais manteve uma ligação umbilical, talvez figadal, seguramente do coração com o samba tradicional, o samba raiz.
A partir de seu primeiro álbum, de 1974, pela RCA, com o título claro, simples, direto, básico de Cristina, gravou canções dos maiores compositores do samba. Nesse primeiro, tinha Manacéia, “Quantas lágrimas”, que chegou às paradas de sucesso, como registra a maravilhosa Enciclopédia da Art Editora. Gravou Geraldo Pereira, Wilson Batista, Monarco, Dona Yvone Lara, Cartola, Donga, João da Baiana, Pedro Caetano-Claudionor Cruz, J. Cascata, Candeia, Bide Barcellos, Mário Lago, Ataulfo Alves, Ary Mesquita. De Noel Rosa, gravou um álbum inteiro, em 1995.
Difícil dizer se há alguém do Quem é Quem do Grande Samba que ela não gravou.
Acho fascinante como Cristina – na certidão Maria Christina Hollanda Ferreira – sempre manteve os laços com Paulo Vanzolini.
Quando, em 2002, a carioca Biscoito Fino lançou uma caixa de quatro CDs com praticamente toda a obra do extraordinário compositor paulistano, Acerto de Contas de Paulo Vanzolini, Cristina esteve presente em cada um dos quatro discos. Cantou “Mente”, de Eduardo Gudin-Paulo Vanzolini, “Noite longa”, de Toquinho-Paulo Vanzolini, “Falta de mim” e “Morte é paz”, as duas com letra e música do professor de biologia da USP.
Há um detalhinho interessante aí: nesses quatro discos, cantam também seus irmãos Chico, Miúcha e Ana de Hollanda.
Os filhos do historiador Sérgio são, todos eles, fãs do zoólogo Vanzolini.
Os anjos, com toda certeza, estão recebendo muitíssimo bem Cristina.
20/4/2025
A foto do alto, em cores, é a capa do segundo disco pela Ariola, de 1981. O disco Prato e Faca, da RCA, é de 1976.