As relações entre Brasil e Estados Unidos atravessaram mais de dois séculos, combinando afinidades ideológicas, interesses estratégicos, trocas econômicas e culturais — mas também períodos de distanciamento, desconfiança e, mais recentemente, choques abertos. Desde o século XIX, a convivência entre as duas maiores potências do continente oscilou entre o pragmatismo diplomático e o idealismo político, sem nunca romper de modo irreversível. A história, no entanto, mostra que essa durabilidade não é garantida: parcerias sólidas também se corroem quando faltam previsibilidade, reciprocidade e visão estratégica.
Ainda éramos colônia portuguesa quando sopraram por aqui os ventos da Revolução Americana, que culminou na independência dos EUA, anunciada no dia 4 de julho de 1776. As idéias de república, soberania popular e federalismo inspiraram inconfidentes mineiros, revolucionários pernambucanos de 1817 e intelectuais do início do século XIX. Conquistada a independência no Brasil, em 1824 os Estados Unidos foram o primeiro país fora da Europa a reconhecer o novo Estado brasileiro — um gesto político de peso, que inaugurou um diálogo constante entre as duas nações.
Nos primórdios da República, Joaquim Nabuco, diplomata e intelectual de enorme prestígio, via nos Estados Unidos um aliado natural para consolidar o hemisfério ocidental como espaço de estabilidade, progresso e autonomia frente às potências europeias. Nomeado embaixador em Washington em 1905, defendeu um pan-americanismo baseado na cooperação, não na dominação, e acreditava que o Brasil poderia se modernizar mantendo sua identidade, tendo como referência valores ocidentais e democráticos.
O pan-americanismo de Nabuco encontrou novo vigor nos anos 1930 e 1940 com Oswaldo Aranha, artífice da aliança estratégica durante a Segunda Guerra Mundial. Ministro das Relações Exteriores e depois embaixador em Washington, Aranha soube transformar a posição geopolítica do Brasil em trunfo: negociou apoio financeiro, técnico e militar dos EUA em troca do engajamento brasileiro no esforço aliado. Daí nasceram acordos decisivos, como a construção da Companhia Siderúrgica Nacional e a instalação de bases aéreas no Nordeste, fundamentais para a defesa do Atlântico Sul. O país participou da guerra ao lado dos Aliados e saiu dela com um parque industrial fortalecido — resultado direto dessa cooperação.
No pós-guerra, o Brasil colheu prestígio internacional. Foi membro fundador da ONU, presidiu a Assembléia Geral de 1947 sob a liderança de Aranha e articulou o apoio à criação do Estado de Israel. Pouco depois, participou de sua primeira missão de paz no Canal de Suez, em 1956, a pedido dos EUA, consolidando seu papel de mediador em crises internacionais.
A influência norte-americana, entretanto, não se limitou à diplomacia e à segurança. Nos anos 1950 e 1960, a ascensão da sociedade de consumo nos EUA moldou aspirações da classe média brasileira. O “American Way of Life” — casa própria, automóvel, eletrodomésticos, ascensão pelo mérito — chegou por meio do cinema, da música, da publicidade e da televisão, mas também por programas de cooperação como a Aliança para o Progresso, lançada por John F. Kennedy. Essa iniciativa injetou recursos em infraestrutura na América Latina, tendo o Brasil como um dos principais beneficiários. No setor produtivo, empresas como Ford, General Motors e IBM consolidaram cadeias industriais e comerciais profundamente integradas ao mercado brasileiro.
Durante a Guerra Fria, mesmo com assimetrias de poder e divergências ocasionais — como nas políticas nucleares ou na defesa de uma nova ordem econômica internacional nos anos 1970 —, a relação permaneceu funcional. O Brasil buscava desenvolvimento, segurança e inserção internacional; os Estados Unidos queriam estabilidade política e aliados firmes no continente.
Hoje, porém, esse patrimônio diplomático enfrenta um teste severo. A volta de Donald Trump ao centro do poder americano já produz efeitos adversos. Sua agenda protecionista e a imposição de tarifas punitivas às exportações brasileiras comprometem a previsibilidade e a confiança mútua construídas ao longo de décadas. Mais do que um embate comercial, trata-se de um desencontro estratégico: os fundamentos do pan-americanismo que Nabuco e Aranha ajudaram a construir vêm sendo corroídos por um isolacionismo que trata parceiros históricos como competidores ou ameaças.
A fricção não se explica apenas pela política americana. O viés antiamericano da atual política externa brasileira também contribui para o esfriamento das relações. Ao adotar retórica datada e alinhar-se a fóruns e posições abertamente críticas a Washington, o governo brasileiro afasta-se de um aliado histórico e de um investidor central, num momento em que o sistema internacional vive transição incerta.
A nova ordem mundial que emerge é mais fragmentada, instável e disputada. A ascensão de potências como China e Índia, a proliferação de arranjos alternativos como os Brics e a perda de vigor dos organismos multilaterais corroem a arquitetura construída no pós-guerra. Aqui cabe lembrar Gramsci: “O velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer; nesse interregno, surgem os fenômenos mórbidos mais variados.” Esse interregno geopolítico é fértil para o avanço do unilateralismo, do protecionismo e da desconfiança — venenos para relações bilaterais que dependem de estabilidade e longo prazo.
O legado mostra que Brasil e Estados Unidos, mesmo em contextos adversos, encontraram terreno comum para cooperar. Mas a história também ensina que nenhuma parceria se mantém apenas pela inércia. Sem diálogo consistente, respeito mútuo e clareza de interesses, a relação corre o risco de deixar de ser um ativo estratégico para tornar-se um campo de atrito permanente.
O desafio, agora, é recuperar a tradição de uma diplomacia que soube, no passado, articular alianças com autonomia e inteligência. Nabuco e Aranha compreenderam as vantagens do estreitamento dos laços com a América, desde que mediado pela defesa intransigente de nossa soberania. Laços culturais e econômicos não se desmancham da noite para o dia. Temos um ativo de mais de 200 anos nas relações com os Estados Unidos e abrir mão disso pode fazer diferença entre ter um lugar à mesa ou ficar à margem das decisões que moldarão o século XXI. Preservar este ativo exige discernimento para não se deixar contaminar por vieses ideológicos que dificultam o exercício do pragmatismo, um dos pilares da doutrina diplomática brasileira, desde os tempos do Barão do Rio Branco.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 20/8/2025.
