As urnas chilenas expressaram, na eleição deste domingo, o clima de ressaca política e institucional decorrente do estallido social de 2019 — a onda de protestos massivos que sacudiu o país, abalou o sistema político e inaugurou um período de volatilidade. Se em 2021 essa energia levou à eleição de Gabriel Boric, um jovem proveniente dos movimentos estudantis, agora produziu um segundo turno no qual o ultradireitista José Antonio Kast aparece como franco favorito. A soma dos votos da direita e centro-direita supera 70% dos votos válidos. Entender virada tão profunda exige considerar o efeito duradouro daquela explosão social.
O Chile pós-Pinochet tornou-se exceção na América Latina: democracia estável, economia aberta, crescimento sustentado e um sistema de alternância equilibrado entre a centro-esquerda da Concertación e a direita moderada de Sebastián Piñera. Essa “transição exemplar” foi produto de um arranjo político robusto, que combinou reformas econômicas com ampliação gradual de direitos e políticas sociais. Esse eixo estabilizador, no entanto, foi varrido pela onda de 2019, que abriu espaço a forças políticas de ruptura, tanto à esquerda quanto à direita.
Não por acaso, os dois candidatos que avançam ao segundo turno — Jeanette Jara, comunista, e José Antonio Kast, direitista admirador de Pinochet — encarnam polos antes marginais. A ascensão de ambos evidencia o impasse institucional deixado pela erosão do centro político.
A energia disruptiva foi inicialmente capitalizada pela esquerda emergente. A pressão das ruas impôs a convocação de uma Assembleia Constituinte com forte peso identitário. O texto resultante, que definia o Chile como “Estado plurinacional” e ampliava prerrogativas de grupos indígenas e minorias, foi derrotado em plebiscito. O país entrou, então, num ciclo de instabilidade constitucional: também rejeitou o texto produzido posteriormente pela direita. Sem consenso, permaneceu, por inércia, a Constituição herdada de Pinochet, embora amplamente reformada.
Nesse ambiente, Gabriel Boric venceu as eleições de 2021 com uma proposta de esquerda democrática, crítica tanto ao legado pinochetista quanto às experiências autoritárias de esquerda na região — Venezuela, Nicarágua e Cuba. Era um progressismo moderno, preocupado com direitos sociais e renovação institucional. Mas seu governo encontrou imediatamente um terreno minado: desgaste do processo constituinte, efeitos econômicos da pandemia e aumento da criminalidade.
O tema da segurança tornou-se central. Embora o Chile mantenha índices relativamente baixos pelos parâmetros latino-americanos, a percepção de insegurança cresceu rapidamente. Mortes violentas passaram de 2,6 por 100 mil habitantes para 6,4 em menos de uma década. Houve expansão do narcotráfico, casos de sequestros e episódios de violência extrema. A imigração irregular — especialmente venezuelana, quase um terço do fluxo recente — passou a ser vista como fator adicional de tensão. O medo, mais que qualquer ideologia, tornou-se o combustível do pleito atual. Kast foi o maior beneficiário.
Esse movimento não é exclusivo do Chile. Ele dialoga com uma tendência global de esvaziamento do centro político e avanço de candidaturas de direita radical ou nacionalista. Dos Estados Unidos à Europa Ocidental, passando pela América do Sul, observa-se um pêndulo que tem oscilado para posições mais duras em temas como segurança, imigração e identidade nacional. Na Itália, Holanda, Alemanha, França, Suécia e também na vizinha Argentina, projetos conservadores ganharam força ou chegaram ao poder. O caso chileno, embora tenha raízes próprias no estallido social e no fracasso do processo constituinte, inscreve-se nesse novo clima político mundial.
A esquerda, por sua vez, passou por transformação relevante. O Partido Comunista, historicamente limitado por sua identidade ideológica, tornou-se hegemônico na coalizão “Unidad por Chile”. Não desempenha hoje o papel moderador que teve em tempos de Allende; ao contrário, carrega a marca de um partido que, por décadas, apoiou regimes autoritários de esquerda e que, durante a ditadura, abraçou a via armada. A escolha de Jeanette Jara, embora ela modere seu discurso, consolidou essa hegemonia. O gesto de anunciar sua desfiliação em caso de vitória soa como uma emenda pior do que o soneto — e revela o tamanho do obstáculo que enfrenta.
O campo democrático cometeu um erro estratégico: ao apostar numa candidatura hegemonizada pelos comunistas, ofereceu a Kast o contraste perfeito entre “ordem” e “radicalismo”, ainda que essa oposição simplifique a realidade chilena. Em vez de uma frente ampla, ansiada por grande parte do eleitorado, consolidou-se uma frente essencialmente de esquerda.
O resultado é um país preso entre dois polos antagônicos. A crise constitucional persiste, a confiança nas instituições permanece abalada e a polarização impede a construção de maiorias moderadas. O estallido social abriu expectativas profundas, mas também frustrações intensas. Sua ressaca é o cenário em que os chilenos decidirão entre uma esquerda comunista que não inspira confiança no centro político e uma direita radical que promete ordem sem garantir estabilidade democrática.
Independentemente do desfecho do segundo turno, o Chile terá diante de si o desafio urgente de reconstruir um eixo de convivência institucional — não o mesmo da era da Concertación, mas algum capaz de restaurar previsibilidade, diálogo e confiança. Nem Kast nem Jara parecem oferecer essa rota. O país enfrenta, assim, a perspectiva de anos turbulentos, em que ainda se busca uma síntese nova para superar a oscilação constante entre rupturas e reações. A Cordilheira dos Andes anuncia tempos inquietos.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 19/11/2025.
