Ao Direito o que é do Direito

O ministro Edson Fachin assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal em meio a enormes expectativas. Com seu estilo discreto, Fachin toma para si a missão de restaurar a autocontenção do Supremo e de reafirmar valores como moderação, transparência, separação de poderes e decisões colegiadas. Tempos de comedimento e austeridade se anunciam. Emblemática a sua recusa de realizar a festa de posse, tradicionalmente financiada por lobby de associações de juízes.

A hipertrofia do Poder Judiciário nos últimos seis anos decorreu, em certa medida, de uma conjuntura na qual a democracia brasileira foi submetida a intenso estresse, cujo ápice foi o 8 de janeiro de 2023. O protagonismo exacerbado do STF adveio, em parte, de um contexto marcado pela ameaça ao Estado Democrático de Direito e pela omissão de instituições como a PGR no governo Bolsonaro.

O exemplo mais emblemático dessa excepcionalidade foi o inquérito das Fake News, que já dura seis anos sem conclusão. Nele, o ministro Alexandre de Moraes concentrou o poder de comandar as investigações e de julgar. Não é normal um inquérito ter este tratamento, ainda mais permanecer sob sigilo durante tanto tempo.

A judicialização da política se intensificou, alimentando a percepção de que o STF se tornou um ator político, e não apenas um árbitro constitucional.

A percepção crítica em relação ao Supremo não se limita às suas decisões. A Corte também enfrenta problemas éticos e institucionais que afetam sua credibilidade. Casos de ministros com familiares atuando como advogados em processos julgados pelo próprio Tribunal, a manutenção de negócios privados paralelos e encontros informais com empresários e políticos — o tradicional evento em Portugal organizado pelo decano Gilmar Mendes — alimentam a sensação de promiscuidade entre interesses públicos e privados. Esses episódios corroem a imagem de imparcialidade e reforçam o sentimento de que o Supremo opera em um círculo de poder pouco permeável à transparência e ao controle social.

Ao agir como barreira de contenção a investidas contra a ordem democrática, o STF acabou adotando um número excessivo de decisões monocráticas, o que provocou desequilíbrio entre os Poderes da República, colocando-o sob o fogo de críticas de ativismo judicial, de invasão de esferas de competência dos demais e de questionamentos quanto à legitimidade de algumas de suas decisões — especialmente quando não foram tomadas de forma colegiada.

Exemplos não faltam. Em 2020, Fux suspendeu sozinho a implantação do “juiz de garantias”, decisão que gerou forte reação no Congresso por barrar uma lei aprovada. No ano seguinte, Nunes Marques autorizou cultos presenciais em plena pandemia, contrariando governos locais. Casos assim mostram como decisões individuais em temas sensíveis ampliam o desgaste político da Corte.

Com a posse do ministro Fachin na presidência, ressurgem vozes como a do jurista Miguel Reale Júnior, que afirmam a urgência de um retorno a um Supremo mais contido, mais colegiado, respeitoso da separação de Poderes e da Constituição: “Ultrapassamos essa dificuldade imensa do processo do golpe de Estado. Chegamos à solução da reafirmação da democracia. É o momento de o STF ir mostrando uma volta à normalidade, para finalizar esse momento. Chegou a hora de o STF fazer uma autocontenção, uma frase muito usada por Fachin.”

A necessidade de voltar à normalidade institucional não é apenas teórica: trata-se de resgatar a confiança pública, a previsibilidade do sistema jurídico e a rígida observância da harmonia e da separação entre os poderes constituídos. As palavras do novo presidente do STF revelaram compromissos com tais princípios. Para que eles se concretizem é fundamental que casos relevantes sejam examinados e julgados pelo colegiado, com debate, contraditório e maior legitimidade. A importância desse ritual ficou muito clara no julgamento do “núcleo crucial” da tentativa de golpe. Independentemente do seu teor, o voto do ministro Luiz Fux teve o mérito de estabelecer o contraditório e dar mais legitimidade à decisão da Primeira Turma.

É nesse ambiente que Edson Fachin assumiu a presidência do Supremo, e suas declarações ao longo dos últimos anos indicam disposição de resgatar os parâmetros de moderação. De sua lavra vêm afirmações segundo as quais a legitimidade da Corte “decorre de sua inserção no pacto democrático, e não da pretensão de governar no lugar da política”. Também defendeu a contenção estratégica “para proteger a democracia, mas jamais para governá-la”, e ressaltou que “não é o Supremo Tribunal Federal que está sob ataque, mas o Estado Democrático de Direito”, valorizando a separação dos poderes, enfatizando o papel do Legislativo como representante direto dos anseios da sociedade.

O restabelecimento do equilíbrio institucional é urgente por diversas razões. Preservar a democracia significa respeitar a Constituição e os limites de cada poder. Quando o Judiciário assume papéis alheios, corre o risco de ser visto como um poder absoluto, o que alimenta discursos de contestação e até de ruptura. A legitimidade do STF depende não apenas do conteúdo de suas decisões, mas também dos procedimentos: decisões colegiadas, transparentes, motivadas e previsíveis aumentam a confiança social. A segurança jurídica também é indispensável para cidadãos, empresários, investidores e para o próprio funcionamento do Estado, que não pode se ver paralisado por decisões unilaterais e inesperadas.

O restabelecimento institucional é impostergável, mas não depende apenas do Supremo. O recurso frequente do Executivo ao STF para reverter derrotas no Parlamento alimenta a percepção de alinhamento entre os dois poderes.

Apesar das dificuldades, o novo quadro que se descortina é promissor para o Poder Judiciário voltar ao seu leito natural. No seu discurso de posse, o novo presidente voltou a afirmar a frase que é o seu mantra e simbólica da normalidade tão almejada: “Ao Direito o que é do Direito. À política o que é da política.”

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 1º/10/2025. 

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