USP 90 anos: a eterna missão de formar líderes

Noventa anos depois de sua fundação, em 25 de janeiro de 1934, a Universidade de São Paulo tem diante de si o mesmo desafio de quando engatinhava. Formar uma nova safra de lideranças para um Brasil em intensa transformação, em decorrência das grandes mudanças que o planeta atravessa. Essa sempre foi a sua vocação.

Foi para isso que ela foi fundada em um país que vivia um processo de intensa industrialização e urbanização. Em poucas décadas ela levaria o Brasil, essencialmente agrário e atrasado, a se transformar em uma sociedade industrializada e moderna.

A USP é filha legítima da modernização do Brasil. Nasceu como um movimento da sociedade, capitaneado por uma elite política e intelectual dotada de um sentido estratégico e uma visão de futuro. A mobilização pela sua fundação expressou aspirações de uma classe média emergente, engrossada por imigrantes que viam na educação o trampolim para a ascensão social de seus filhos.

A USP, portanto, é contemporânea das aspirações que levaram à Revolução de 1930, uma espécie de “revolução burguesa no Brasil”, na qual a acumulação de capital para sua industrialização foi financiada pelo excedente gerado pela agricultura cafeeira.

Antes desse processo até existiam faculdades isoladas, sem conexão e sem uma direção única, com uma visão bacharelesca do saber, definida por um escritor estrangeiro como “uma pequena enciclopédia de conhecimentos inúteis”. A USP foi a primeira instituição a trazer para o Brasil o conceito do tripé ensino-pesquisa-extensão, então vigente há tempos nas universidades dos países desenvolvidos.

A visão sobre a necessidade de uma universidade voltada para formar dirigentes nas várias áreas da sociedade concretizou-se depois de quase uma década de luta. Desde 1925, Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de S.Paulo, defendia a reforma do ensino superior e a criação da Universidade de São Paulo. É desse ano a publicação do seu livro A Crise Nacional, no qual dissecou os problemas do sistema educacional brasileiro, especialmente do ensino superior. Seu jornal engajou-se na campanha e a ela se somaram Fernando de Azevedo, um dos expoentes do movimento Escola Nova, Raul Briquet, Vicente Rao, entre outros intelectuais.

O sonho de Júlio de Mesquita Filho tornou-se realidade em 1934, quando seu cunhado Armando Salles de Oliveira, também diretor do Estadão, foi nomeado interventor paulista por Getúlio Vargas. Dois anos antes, a Revolução Constitucionalista tinha sido derrotada pelas tropas federais. Para se reconciliar com os paulistas, Vargas escolheu para interventor um civil de família quatrocentona. Salles de Oliveira nomeou Júlio de Mesquita Filho como coordenador da comissão de elaboração do projeto de decreto-lei para instituir a USP, assinado em 25 de janeiro.

Militarmente a insurreição dos paulistas de 1932 foi derrotada, mas sua grande bandeira, a normalização democrática por meio de uma Assembleia Constituinte, se concretizou em 1934, não por coincidência o mesmo ano do estabelecimento da USP.

Nascia, assim, a USP – uma universidade, laica, pública, gratuita, pluralista e democrática. Cedo se tornaria a principal instituição de ensino superior do país e a mais bem avaliada mundialmente entre as universidades brasileiras. Sustenta essa posição até hoje.

O núcleo central para sua fundação foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, recém-criada, à qual se juntaram as tradicionais Escola Politécnica, Faculdade de Medicina e Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, além da Faculdade de Medicina Veterinária, a Escola Superior de Agricultura de Piracicaba, o Instituto Biológico e o Instituto Butantã. A Cidade Universitária, situada na antiga fazenda Butantã e, mais tarde, batizada Armando de Salles Oliveira, era já um sonho de Júlio de Mesquita Filho.

Ao longo dos seus 90 anos, a USP projetou líderes em todas as esferas da sociedade, tanto para a iniciativa privada como para o poder público. Em todas as áreas do conhecimento e da ciência destacaram-se em seu corpo docente quadros de primeiríssima qualidade. Basta citar Florestan Fernandes, considerado o pai da sociologia brasileira, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Hildebrando e Samuel Pessoa, nas ciências médicas, Mário Schenberg e José Goldemberg no campo da Física.  A obsessão pela excelência na constituição do seu corpo docente está no seu DNA, desde a fundação. Para viabilizar o ensino de alta qualidade na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, trouxe talentos do exterior como Georges Dumas, Claude Lévi-Strauss, Fernand Paul Braudel, Roger Bastide e Pierre Monbeig.

Hoje, a USP é responsável por 20% de toda produção científica do país e, juntamente com suas coirmãs Unicamp e Unesp, é um elo do moderno sistema do ensino superior do Estado de São Paulo, que inclui, além do Centro Paula Souza e a Univesp, respeitadas instituições municipais e privadas.

Ao longo dos seus 90 anos a USP enfrentou momentos de tormentas. O maior deles nos anos de chumbo pós 1964, especialmente após o AI-5, quando catedráticos, professores e cientistas foram aposentados compulsoriamente e instalou-se na universidade um clima de caça às bruxas. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso, posteriormente eleito presidente da República, quando o Brasil voltou à normalidade democrática.

Temos hoje a gigantesca revolução tecnológica acontecendo, as questões climáticas, a transição energética, os novos desafios da geopolítica, com a China assumindo papel cada vez mais determinante no movimento das cadeias produtivas globais e o debate sobre os rumos da democracia nos próximos tempos.

Em recente entrevista, o atual reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Júnior, manifestou o grande desafio da instituição, em relação ao futuro. Considerando que o mundo de hoje é completamente diferente daquele que nossos antepassados conheceram, ele pontuou: “Não basta mais um diploma para entrar no mundo do trabalho. Nem mesmo um diploma da USP”. Tem razão o reitor ao realçar as exigências do moderno mercado de trabalho, onde novas habilidades, novos conhecimentos e atualização constante são exigidos dos profissionais modernos. É impensável, por exemplo, formar médicos sem o domínio da Inteligência Artificial.

A USP enfrenta agora o desafio de renovar e atualizar o currículo de todas as áreas do conhecimento e de responder às questões da agenda moderna, especialmente as da diversidade e do meio ambiente.

O passado glorioso deve ser reverenciado, mas seria um grave erro utilizá-lo em uma postura conservadora renitente às mudanças imperativas face o extraordinário e vertiginoso processo de transformação e inovação tecnológica. A USP dá sinais de não se acomodar para continuar a cumprir sua nobre missão de formar líderes para um mundo cada vez mais complexo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 7/2/2024. 

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