Um bar corta a noite

Cortando a noite fria, a 80 quilômetros por hora, o bar do Santa Cruz é um lugar especialmente aconchegante: balcão alto, mesinhas baixas cercadas por poltronas macias. A cadência da marcha – as rodas batendo-se com os trilhos – embala a freguesia e a conversa. E madrugada a dentro muita coisa pode acontecer a bordo do trem mais famoso do País.

Estamos nos anos 50. O Santa Cruz deixou a Estação da Luz às 11h20 da noite, pontualmente, para chegar à D. Pedro II, no Rio de Janeiro, com o dia clareando.

Se um dos fregueses começar a falar sozinho e gesticular muito (ainda no primeiro gole de sua bebida), nada a estranhar. Seguramente é um ator ensaiando seu texto. E um casalzinho muito meloso que parece estar em lua de mel pode estar mesmo.

O freguês engraçar-se com a comissária que atende à mesa não é pecado. Todas têm curso de preparação rigoroso, que as ensina a livrar-se de investidas impertinentes. Mas se o tipo se comportar mal, quiser brigar, não aceitar diálogo, o maquinista o porá para fora na primeira estação.

O carro-bar fecha a fila de seis vagões com cabinas, um restaurante e um bagageiro. No restaurante há conversas e risos. A noite é uma criança. Cyro Monteiro ia até o amanhecer bebericando, cantarolando e batucando seus sambas na caixa de fósforos. Vinicius de Moraes pedia uma garrafa à sua mesa – sempre a mesma mesa, no meio do carro (é o termo, o que leva carga é vagão).

“Ficava na dele, pensando”, contam as comissárias. Muitas vezes sacava uma caneta e punha-se a escrever. No trem, muitos achavam que em um momento desses compôs “Gente humilde”, para Ângela Maria.

E sempre, até quando fez a viagem sem volta dos mortais, houve Aracy de Almeida. Nos bons tempos, chamava uma cerveja e ficava batendo papo com os garçons e garçonetes, que conhecia pelo nome. Nos últimos oito anos, porém abandonara o restaurante. Ia diretamente para sua cabina.

Mais tarde, pedia chá ou leite morno. De manhã, com o trem chegando ao Rio de Janeiro, aceitava café preto, com pouco açúcar.

Aracy faleceu em junho de 1988. O noturno foi desativado em 1991, por falta de passageiros. Em 1994 surgiu para o mesmo percurso o Trem de Prata, com proposta de atendimento refinado, mas só se manteve até 1998.

Esta crônica foi originalmente publicada no blog Vivendo e Aprendendo, em 10/7/2024. 

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