Em seu périplo pela África, o presidente Lula acertou em cheio quando anunciou que o Brasil fornecerá recursos para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), acusada de ter funcionários atuantes na ação do Hamas contra Israel. Bingo!
Mas errou feio ao se calar quanto à decisão do governo de Nicolás Maduro de suspender as atividades do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU na Venezuela, estabelecendo que seus integrantes deixem o país em 72 horas, prazo que vence neste domingo. Com a mudez, Lula agrada ao amigo Maduro, mas dá a entender que a ONU que protege palestinos é mais legítima do que a que defende os venezuelanos. Ou pior: que os palestinos têm mais valia do que os nossos vizinhos.
Com 264 presos políticos e mais de 9 mil pessoas em regime de liberdade restritiva, segundo a ONG Foro Penal, é uma temeridade que os venezuelanos não possam contar com o auxílio da Agência das Nações Unidas.
O gabinete em prol dos direitos humanos da ONU foi instalado na Venezuela em 2019, quando a ex-presidente do Chile Michelle Bachelet ocupava o principal posto do Alto Comissariado. O escritório de Caracas – sempre em linha com a Agência da ONU para Refugiados (UNHCR) – funcionaria até 2025, mas Maduro se irritou com um comunicado da Agência criticando a prisão da ativista Rocío San Miguel, acusada de terrorista.
Um dia antes da expulsão da ONU, a prisão de Rocío, uma advogada de prestígio conhecida por seu trabalho na ONG Control Ciudadano, já havia gerado reação em várias democracias do mundo. A União Europeia demonstrou preocupação com o sumiço da ativista – incomunicável por mais de três dias – e pediu sua “imediata libertação”. Os Estados Unidos, que firmaram com a Venezuela acordo para eleições livres em troca de suspensão de sanções econômicas, denunciaram o rompimento das tratativas e a previsível retomada das punições ao país. O Brasil ficou calado.
No pós-prisão, Maduro deu de ombros e dobrou a aposta ao mandar a ONU sair às pressas do país. A decisão teria sido tomada porque a instituição “tornou-se o escritório de advocacia privado do grupo de golpistas e terroristas que conspiram permanentemente contra o país”, conforme disse Yvan Gil, ministro das Relações Exteriores. Ele exigiu ainda que o Alto Comissariado retificasse publicamente frente à comunidade internacional “sua atitude colonialista, abusiva e violadora da Carta das Nações Unidas”. A expulsão provocou nova onda de críticas dos países membros, à direita e à esquerda, incluindo os sul-americanos Argentina, Chile, Equador, Paraguai e Uruguai. O Brasil de Lula não deu um pio.
No mesmo dia, Lula garantiu à ONU que renovaria a doação brasileira para que sua representação em Gaza continuasse a proteger palestinos. O escritório da Agência havia sido colocado sob suspeição depois das denúncias de que 11 de seus funcionários teriam auxiliado a operação de sequestro de judeus pelo Hamas. Eles foram afastados e há uma investigação em curso. A maioria dos países europeus, exceto a Noruega, suspendeu o envio de recursos para a UNRWA. Os Estados Unidos também. Uma reação absurda, que, no afã de penalizar eventuais ações paralelas e ainda não confirmadas, pune os palestinos, para os quais o escritório de Gaza, o único na região, é essencial à sobrevivência. Mais radical, o governo de Israel quer o fim das atividades da ONU em Gaza.
Na guerra de Israel contra o Hamas, iniciada em 7 de outubro, quando o grupo terrorista matou 1.404 judeus e sequestrou outros 240, mais de 25 mil palestinos foram mortos, incluindo mulheres e crianças, fazendo com que o mundo, mesmo aliados-irmãos como os Estados Unidos, favoráveis ao direito de defesa de Israel, condenassem e passassem a ver com desconfiança as ações de Benjamin Netanyahu.
Assim como na Palestina, na guerra da Rússia contra a Ucrânia a ONU também não consegue ser agente de mediação, limitando-se à ajuda humanitária. Mas até esse papel é rejeitado por autocratas. Para eles, direitos humanos são empecilhos ao poder perpétuo.
Vladimir Putin não só desdenha da ONU como de qualquer organização ou código ético, eliminando adversários como se fossem moscas. Na sexta-feira, o líder opositor Alexei Navalny morreu na prisão gelada do Ártico sem explicação convincente. Dirigentes de democracias ao redor do mundo reagiram de imediato. Mais uma vez ouviu-se o silêncio de Lula.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 18/2/2024.