O país do perdão

Descumprir a lei, não pagar dívidas e muito menos multas. Esse tripé, que esbofeteia os cidadãos honestos, foi referendado pela maioria dos deputados federais com a aprovação de mais uma anistia a dívidas de partidos políticos, a quarta pós-1988, desta vez com o absurdo adicional de incluí-la na Constituição. Um escárnio com requintes de crueldade, escancarado na redução do fundo eleitoral para candidatos pretos e pardos, ferindo o princípio universal de que todos são iguais perante a lei. Mas tudo vale no país do perdão.

O auto-perdão uniu quem se diz diferente e que no frigir dos ovos nem mesmo se envergonha de ser tão igual. Do PT de Lula ao PL de Bolsonaro, a maioria disse sim à repugnante anistia, sem nem mesmo tentar salvar o trecho que pune pretos e pardos. O campo contrário à PEC também uniu forças antagônicas: o Novo, à direita, e o PSOL, de Guilherme Boulos, candidato a prefeito de São Paulo.

Essas junções aparentemente extravagantes só demonstram a miséria da política brasileira, com falsas identidades ideológicas e representantes cada vez mais descolados do eleitor e da realidade do país. Preocupados, em primeiro lugar e antes de tudo, em garantir suas exceções e regalias.

Nesse turno da PEC, as mulheres se safaram de limitações. Isso porque as multas pelo não cumprimento de cotas para as candidatas em outras eleições já tinham sido perdoadas em lei de 2021. A PEC de agora, que ainda depende de aprovação de dois terços dos senadores em dois turnos de votação, é muito mais ampla. Cria excepcionalidade tributária para partidos políticos, uma estranha figura de um Refis para dívidas futuras e a possibilidade de pagar parcelas do financiamento com o Fundo Eleitoral, mesmo que a punição devida seja por uso de dinheiro de “origem não identificada”, vulgo Caixa 2.

A farra deverá custar a bagatela de R$ 23 bilhões aos brasileiros que financiam os fundos eleitoral e partidário com seus impostos, uma outra excrescência. Hoje, em nome de “custear a democracia”, o financiamento público de partidos e campanhas eleitorais produz distorções irreparáveis, como as de eleitores de Lula encherem os cofres do PL de Bolsonaro. O mais justo seria tirar o dinheiro público dessa enrascada e deixar cada organização política – definida como pessoa jurídica de direito privado e dona de um CNPJ – engajar as pessoas para cobrir custos e investimentos.

À malfadada anistia, juntam-se outros perdões para afortunados que os políticos tupiniquins usam para afagar amigos e construir o futuro. Não o do país, mas o deles próprios.

Depois de recuar do escandaloso projeto de sua autoria para turbinar salários de juízes e promotores, o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) produziu uma esquisita equação para renegociar a dívida dos estados com a União. A proposta beneficia especialmente o Rio de Janeiro, São Paulo e a sua Minas Gerais, onde pretende disputar o governo em 2026, e pune os bons pagadores. Cria um sistema progressivo de perdão dos juros da dívida e inclui ativos reais (empresas públicas dos estados) e podres (dívidas de credores) como forma de abatê-la. Uma festa.

O gosto nacional pelo perdão estende-se a outras searas. Empreiteiros confessos de surrupiar dinheiro da Petrobrás foram perdoados, políticos do mensalão e petrolão estão por aí, livres, leves e soltos. O presidente Lula teve seus processos anulados não por inocência, mas por erro de foro, curiosamente só percebido quatro anos depois das condenações. Foi “perdoado” e ungido candidato para derrotar Jair Bolsonaro, que coleciona motivos de sobra para crer em anistia para a sua inelegibilidade.

Na mesma Câmara que na quinta-feira aprovou o abominável perdão aos crimes cometidos por políticos discute-se, animadamente, o projeto de anistia aos condenados pelo 8 de janeiro de 2023 e, de quebra, ao ex-presidente. É de dar calafrios. Mas nada improvável no país do contrário, que pune quem cumpre a lei e perdoa quem faz dela gato e sapato.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 14/7/2024. 

Um comentário para “O país do perdão”

  1. Simplesmente perfeito – lúcido, direto, aguerrido – o texto de Mary Zaidan. A sujerada toda está ai para quem quer ver.

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