O fator Kamala Harris

É de autoria de Lenin a frase “há décadas em que não acontece nada e há semanas que décadas acontecem”. Os Estados Unidos vivem dias assim tal a sucessão de episódios políticos ocorridos nas últimas semanas.

O que ontem era novo hoje é antigo. Dez dias depois do atentado a Donald Trump, não houve a esperada revoada de eleitores na direção de sua candidatura. E sua zona de conforto foi abalada pela renúncia da candidatura de Joe Biden e sua substituição por um novo fenômeno político: Kamala Harris. Trump imaginava se eleger sem suar a camisa, apenas explorando a imagem de mártir e herói. Agora vai ter que arregaçar as mangas.

Entrou em campo sua excelência o fato, para lembrar a famosa frase de Ulysses Guimarães. A estratégia trumpista estava montada para enfrentar um candidato em condições físicas e mentais debilitadas. Estava na confortável situação de ser, praticamente, o único corredor na pista eleitoral. Já pensando no futuro do trumpismo, escolheu um candidato a vice-presidente jovem, desde já apontado como seu herdeiro político.

Ao seu companheiro de chapa, JD. Vance, caberia dar continuidade, após o novo mandato de Trump, ao Make America Great Again, movimento que potencializa o sentimento de camadas de trabalhadores brancos do “cinturão de ferrugem” americano, cujas indústrias perderam competitividade com a globalização e o advento da Quarta Revolução Industrial.

A dobradinha Trump-Vance é a personificação de uma visão de mundo isolacionista e protecionista do ponto de vista econômico. É anti-establishment, anti-imigrante, anti-elite e supremacista. Nutre ressentimentos com as “classes instruídas”, a quem acusa de doutrinar seus filhos nas escolas.

David Books foi cirúrgico ao apontar que o trumpismo se apropriou do conceito de luta de classes do marxismo, ao instigar o conflito entre as “elites” e o trabalhador afetado pela globalização. Essa classe operária guinou para a ultra direita em todo o mundo ocidental, turbinando sua ascensão em diversos países.

Por dois anos, Donald Trump construiu uma narrativa etarista, da qual o principal alvo era Joe Biden. Essa estratégia foi anabolizada pelo papel do acaso na história, o atentado a Trump, na Pensilvânia. Com o episódio, o candidato republicano vestiu o manto de enviado de Deus para salvar e fazer a América.

O fator Kamala desorganizou a disputa presidencial dos Estados Unidos. Cai por terra a narrativa etarista. Ou melhor, o feitiço virou contra o feiticeiro, pois Trump, se eleito, será o presidente dos Estados Unidos mais velho ao completar o mandato. Para um candidato acostumado a bater, vai ter de aprender a apanhar. Kamala vem com tudo para cima dele.

No seu primeiro comício eleitoral a nova candidata dos democratas foi na jugular do seu adversário: “Enfrentei criminosos de todos os tipos: predadores que abusaram de mulheres, fraudadores que enganaram consumidores, trapaceiros que quebraram regras para seu benefício. Então, ouçam-me quando digo: eu conheço o tipo de Donald Trump”. Kamala Harris foi procuradora-geral do Estado da Califórnia.

A maré virou para os democratas. Até o último domingo, havia uma agonia sem fim com a candidatura Biden enfrentando seu inferno astral. A cada momento surgiam novos apelos de lideranças expressivas de seu partido para desistir de ser candidato. O clima era de velório. Já Donald Trump desfilava como se já estivesse eleito.

As primeiras 24 horas da candidatura Kamala operaram o milagre de unir seu partido e injetar ânimo nas fileiras democratas. Mais da metade dos delegados da convenção do seu partido, marcada para agosto, já apoiam sua candidatura. Conta ainda com o apoio dos 23 governadores, de 41 dos 47 senadores e de 181 dos 214 deputados de seu partido. Números que só aumentam.

A safra de boas notícias não pára aí. Nesta terça-feira a Reuters divulgou a primeira pesquisa com Kamala à frente do seu oponente, por dois pontos. Em apenas um dia, sua campanha arrecadou US$ 81 milhões, um recorde, por meio de 880 mil contribuintes. Também nesta terça-feira, as doações já beiraram US$ 100 milhões. O que mais importa não é a cifra espetacular, e sim o fato de 60% vir de eleitores de primeira doação. Ou seja, Kamala atraiu quem estava longe da disputa. Isso indica que seu nome empolgou a base do partido e ampliou para além dos seus limites.

Trump ainda é o favorito, mas o cenário mudou. Sua estratégia, de fazer da disputa presidencial um plebiscito sobre o governo Biden, começa a fazer água. O mais provável é que a polarização se dê entre dois projetos para o país, um baseado na idealização de um passado e expresso no slogan “Make America Great Again”, e outro apontando para o futuro. Trazer o embate entre esses dois campos é a estratégia que a campanha de Kamala Harris começa a esboçar.

Não se pode ignorar a existência de uma base de massas do trumpismo. É um fenômeno que veio para ficar e alterou o ethos do Partido Republicano. Deixou de ser um partido conservador, moderado e democrático, para ser a expressão política de uma direita disruptiva, de valores antidemocráticos e intolerantes. O reaganismo que desde os anos 80 formava o modo de ser e de agir dos republicanos deu lugar a uma nova ideologia que, no limite, põe em xeque os alicerces da principal democracia do mundo.

Biden agora se recolhe para o fundo do palco, mas em algum momento a História lhe fará justiça. Não só pela sua grandeza de abrir mão da candidatura para o bem de seu país e de seu partido, como registrou na carta de renúncia. Mas por ter realizado um dos melhores governos dos últimos 60 anos, em meio a epidemia da Covid e de duas guerras que afetaram o mundo.

Com relação ao Brasil, um ano antes das eleições de 2022, o governo Biden pressionou políticos e militares para respeitarem o resultado da eleição. E, logo após a derrota de Bolsonaro, Biden declarou que seu governo não apoiaria nenhuma incursão golpista ou qualquer retrocesso democrático em nosso país.

A melhor homenagem à sua personalidade veio da revista The Economist, que, mesmo tendo defendido de forma aguerrida a sua renúncia como candidato à reeleição, escreveu em editorial: “A carta de despedida do presidente falou de suas próprias conquistas, e elas são muitas, entre elas a política climática, uma economia forte e seu apoio à Ucrânia. Seu período no cargo é digno de ser lembrado”.

E é a própria Economist que conclui: “O tempo é curto. Biden deu aos democratas uma segunda chance de vencer uma disputa que parecia fora de seu alcance. Eles não devem desperdiçá-la.”

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 24/7/2024.

Foto de Doug Mills/The New York Times. 

 

 

 

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