O Dia de Ação de Graças está chegando e veja o que me arrumei

Quem tem a língua comprida acaba pagando o preço. A arte de conversar pressupõe que enquanto um fala o outro escuta e, como no jiu jitsu, vão acontecendo as trocas de posições. Eu conto uma coisa e a pessoa me conta outra – teoricamente deveria ser assim. Porém às vezes acabo falando demais e ouvindo de menos.

Quando comento algo que tenho feito, termino fazendo para mais gente. Como sempre gostei de resolver pequenas coisas, fui me tornando uma espécie de Jack-off-all-trades. Em livre tradução = pau pra toda obra, um faz tudo.

De fato, tenho algumas habilidades; vou relatar algumas. Poucas das minhas coisas são levadas para algum profissional resolver. Como digo às faxineiras que passaram por aqui: – por favor, não se preocupe, as minhas coisas deixem que eu mesmo quebre.

Até na medicina resolvo da minha maneira. Em breve explicarei em um texto.

Na infância eu preparava carrinhos de autorama, mudando relação entre pinhão e coroa e adquiri habilidades com o soldador de fios.

Um dia, na saída da escola houve uma ação de marketing do achocolatado Nescau e fui presenteado com uma lata e uma folha de receitas.

Cheguei em casa e minha mãe havia saído com minha avó, que fazia aniversário. Na falta do que fazer, solitariamente li as receitas e decidi fazer um bolo. A cobertura eu mesmo inventei na hora com gema de ovo, açúcar e Nescau. Como ficou meio aguado eu tive a brilhante ideia de colocar aveia para engrossar. Não é que deu certo e ficou gostoso?

Quando as duas chegaram ainda estava quente. Eu disse “Feliz aniversário!”

Até hoje me lembro a cara de surpresa das duas. Eu tinha 11 anos. Infelizmente minha avó faleceu meses depois. Acabei tendo que explicar para elas como eu fiz a cobertura. Alguém já viu isso, uma criança ensinando a avó e a mãe a cozinhar? kkk

Anos mais tarde passei a fazer reparos em pranchas de surf. Aprendi com o mestre do glass José Jadão Junior, o J.J.J.

Então, por puro prazer, reparava a prancha dos meus amigos. Até que por pouco não virou profissão. Era um dinheiro graúdo, rápido, e o principal – fazendo algo de que eu gostava.

Um parceiro de ondas, dono de um surf shop, viu minhas obras de arte e me convidou para atender seus refinados clientes. Aí virou bagunça geral.

Durante minha jornada, fui aprendendo várias coisas e com meu perfeccionismo me profissionalizei.

Bem mais adiante, com a chegada da pandemia, larguei aquela vida de cão que eu vinha levando e optei por ter mais tempo livre para minhas invenções.

Há males que vem para o bem. Hoje estou aqui escrevendo para vocês se desligarem um pouco dos problemas.

Como não curto comida de rua, comecei a me aventurar na cozinha com base nas minhas próprias noções e bom senso. Claro que sempre que recebia uma boa dica eu registrava.

Acabei perdendo o medo de fazer pratos que dão mais trabalho, pois hoje tenho mais paciência e tempo para essas coisas. Ligo o som da cozinha e mando brasa no que idealizei fazer. Nessas eu me desafiei a fazer um peru. Comecei com um pequeno e deu certo.  Como ninguém foi hospitalizado, resolvi fazer um maior e corrigir alguns pontos que observei no anterior.

Afinal, meu dom é encontrar os defeitos e não as qualidades.

Até que no Natal de 2020 aceitei o desafio da família e fiz um de quase 11 quilos.

Encontrei esse monstro em uma loja da Sadia na Rua Tutoia. Quando cheguei em casa achei que tinha sido enganado, que aquilo era um gnu, mas segui o preparo.

Passei horas na cozinha fazendo farofa com nozes, damascos, etc., e controlando o bicho no forno. Após 536 horas na cozinha, apresentei o meu peru aos convidados.

A vovozinha da minha cunhada, que é húngara, comentou:  – Você fez peru? Não gosta peru. Peru carne muito seca.

A Neta falou: – Vou servir um pouco para a senhora.

Ela comeu, comeu, comeu e quando cruzou os talheres, me olhou bem nos olhos e disse: – Foi o melhor peru que já comi, nunca comi um peru tão saboroso, macio e úmido assim.

Me senti o Jaspion da cozinha com esse elogio vindo de gente vivida e com bastante quilometragem.

Depois essa fama percorreu a família e passei a ensinar `às pessoas minhas técnicas. Hoje tenho feito baguetes e sigo incentivando os valentes que desejam tentar.

Uma curiosidade é que o peru é uma ave originaria da América do Norte, e todo ano o presidente americano participa de uma cerimônia em que ele perdoa um peru.

Toda essa ladainha para contar que meu cunhado, que carreguei no colo, casou com uma americana e hoje mora em Chicago.

Recentemente ele começou a planejar que devemos visitá-los na comemoração do Thanksgiving Day para conhecermos a família da moça na Pensilvânia.

Em um telefonema comentei que, se nós fôssemos, eu não me importaria em dar uma ajudinha para a sogra dele com o peru.

Ele, salivando, imediatamente comentou com a sogra, que adorou a ideia. Ela disse que aceita, e com base no que ele comentou sobre minhas habilidades, ela quer que eu assuma o comando e prepare a ave.

Caramba! Veja o que arrumei. Eu não sei se sou capaz de fazer um peru em inglês! Sabe que lá é tudo diferente. Na Itália, se eu chamar manteiga de burro, tudo bem; lá, se eu chamar de dumb, a turma se ofende.

Sem contar que não conheço o forno da sogra dele, a diferença pode ser entre jogar no Maracanã ou no Mineirão. Se é elétrico ou gás? Vou precisar usar uma fórmula para converter a temperatura do Celsinho para a do Daniel Gabriel Fahrenheit. Espero haver algum aplicativo, pois não pretendo escrever a equação nas paredes da cozinha.

Veja onde foi parar minha fama. Atravessou oceanos. Para atuar em Hollywood ninguém me convida.

Eu me ofereci apenas a dar uma mãozinha e fiquei com a responsa de fazer o prato principal da noite mais esperada do ano. Já estou aflito. E se eu atrasar? e se eu perder o vôo? e se eu acordar com enxaqueca de Jack Daniels?…

Nem imagino quantos convidados serão. Fazendo um conta rápida, se ela tiver 7 irmãos, cada um casado 3 vezes, com 3 filhos em cada casamento, eventualmente se eles são bem civilizados e mantêm laços de amizade com as ex, as sogras e os maridos anteriores, estamos falando de mil e poucas pessoas. Fora os avós, os netinhos e os 3 cães Moe, Larry e Curly.

Já pensou se algo sai errado? O fracasso pode me custar a vida. Ali é uma terra de punições. Já estive lá perto de 30 vezes e sempre digo que cada estado ou cidade tem suas leis.

Sempre procuro me informar antes o que acontece. Por exemplo: qual a pena se completar a água do carro alugado com xixi no Michigan?

Vou pesquisar na Pensilvânia o que acontece com quem fracassa no preparo de um peru na noite do Thanksgiving.

Inclusive vou deixar uma dica aqui: nos EUA, se você não conhece bem as leis daquela cidade, nunca peça o troco em balas. Você pode ser mal interpretado.

No momento o que peço é que façam uma corrente de orações ao seu autor preferido.

Se eu voltar, prometo escrever em detalhes como foi essa aventura em minha língua.

Que é bem grande!

Novembro de 2024

 

12 Comentários para “O Dia de Ação de Graças está chegando e veja o que me arrumei”

  1. Grande Faaaaa!! Adoro vc! Vc é iluminado e muito querido!! Me divirto com seu jeito único e seus textos! Boa sorte com o Peru no thanksgiving e que não seja preso se algo sair errado!!!!hehe

    Beijos a vc, Monica e a todos por aí!

  2. Gostei do lápis ✏️ da Vânia (pencilvania).
    E o Jack Daniels tinha enxaqueca?
    Ok, eu entendi que a enxaqueca é resultado da cabeça cheia de J D kkkkkkkk mergulhei nas suas aventuras.
    Boa sorte aí e que o forno não diga pro peru que ele não cabe e que ele procure o forno da padoca kkkkkkkkkkk

  3. Parabéns Fábio, mais uma pérola das suas crônicas. Se esmerando cada vez mais. Quando você fala da sua infância, eu volto no tempo. Fique no peru, pois, se for pato terá tristes recordações do pato Jorge que sabia até somar. Beijos

  4. Grande Fábio,
    Cara que talento , aliás vários … mas vc está se superando nos textos , ri muito .
    O lance da empregada , pode deixar que as minhas coisas eu mesmo quebro foi f … hahaha.
    E com certeza o Peru gringo será um sucesso .
    Depois escreva sobre a sua habilidade na medicina hahaha .
    É isso aí meu AMIGO, vamo que vamo .
    Beijos

  5. Muitas vivências Fábio.
    Bem divertido a produção do Peru kkkk
    Conto bem satirizando.

  6. Fábio, é um presente e uma delícia lermos suas crônicas que transcrevem situações cômicas e verdadeiras principalmente, nos dias atuais, onde se vê, lê e ouve , diariamente, fatos tão desanimadores. Esse texto está tão especial ,que já me transportei para lá com garfo e faca aguardando o gringo Peru. Parabéns, uma vez mais .

  7. Gostei muito do texto , notei um leve ar de positividade – que nem sempre você deixa escapar – nos anteriores.
    Desejo muita sorte com o peru americano. Lembre-se que lá eles adoram o Gravy, que é o molho do fundo da assadeira.
    Não jogue o fundo fora!!
    Abraço

  8. Fábio, mais um texto inteligente e divertido.
    Agora nos resta aguardar a continuidade deste episódio, com a saga do peru americano no Dia de Ação de Graças. Que tudo corra bem e você seja consagrado como um Master Chef!
    Boa viagem! Beijos pra você e Monica.

  9. Como detesto Peru, por ser, realmente, muito seco, espero, como vizinho e fã de seus textos sempre hilários, que uma tigela devidamente forrada e úmida da penosa, suba de elevador do primeiro para o sexto andar dia desses! Cheers!

  10. É meu amigo Fábio, mais uma das suas pérolas!
    Eu imagino a Netflix transformando estes seus textos em uma série com vários episódios, seria Top one!
    Já estamos aguardando a continuação!
    Parabéns, abração!!!

  11. Fábio, você é demais! Excelente seu texto.
    PS: Sem querer colocar ainda mais pressão, só um breve comentário: creio que, a essa altura, você já esteja nos “trending topics” da pacata cidade de Doylestown kkk. Eles todos se perguntam: “Quem é esse homem misterioso que foi recrutado lá do Brasil pra salvar o Thanksgiving da familia Fetterman?”… kkk. Mas, conhecendo suas habilidades, tenho certeza que ninguém irá se decepcionar com o resultado; pelo contrário, será um grande sucesso como tudo o que vc carinhosamente prepara na cozinha. Nos vemos em breve! Bjos,

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