O projeto de lei que classifica o aborto como homicídio – até nos casos de crianças estupradas – teve múltiplas serventias. Mexeu com os brios de uma sociedade que parecia apática, determinou o recuo de forças retrógradas e pôs freios no todo poderoso presidente da Câmara Arthur Lira. Mais: derrubou de vez a falácia de que o Congresso é a cara do povo. Não é.
Distante dos eleitores, o Parlamento brasileiro é o rosto de um sistema distorcido tanto na equação população versus votos, que dita a configuração da Câmara dos Deputados, quanto nos mecanismos que perenizam privilégios de castas hereditárias e de endinheirados.
Desde a fundação da República, o peso do voto na Câmara é desigual. O tema gerou debates acirrados em 1890, na Constituição de 1946 e na Carta de 1988, sem avanços capazes de garantir equilíbrio regional e, simultaneamente, dar o mesmo peso ao voto de cada eleitor.
Na ponta do lápis, São Paulo, com mais de 44 milhões de habitantes, deveria ter 120 deputados e Roraima, com 652 mil, entre um e dois. Como a Constituição estabelece o teto máximo de 70 parlamentares e o mínimo de 8, independentemente da população do estado, a distorção está criada. Trata-se de exemplo batido, que, embora impactante, esbarra no equilíbrio regional, sem o qual estados mais populosos ditariam todas as normas do país, o que não seria justo. O contrário também não o é. Mas não há quem se arrisque a mexer nesse vespeiro e a sub-representação vai se acumulando.
O Congresso não se dispõe a fazer nem mesmo um acerto mínimo. No ano passado, o Supremo determinou que o Parlamento atualizasse a representatividade de acordo com o Censo de 2022, que apurou populações menores do que as estimadas no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Alagoas, Paraíba e Piauí. Esses estados deveriam perder vagas. Santa Catarina, Amazonas, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais teriam suas bancadas ampliadas. Mas o projeto nesse sentido está parado na Comissão de Constituição e Justiça à espera de audiência pública.
No Senado, a figura do suplente, uma sem votos que assume no caso de vacância do titular, também depõe contra a representação. No final de 2022 nada menos de 20% dos senadores eram suplentes. No início desta legislatura, três assumiram o posto. Quem votou em Flávio Dino possivelmente desconhecia Paula Lobato (PSB-MA), que ocupou o lugar do ex-ministro da Justiça e hoje ministro do Supremo. O mesmo aconteceu com os ministros da Educação Camilo Santana (PT-CE), substituído pela suplente Augusta Brito, e do Transportes, Renan Filho, cuja cadeira está ocupada por Fernando Farias.
Não se mexe na representatividade nem no sistema, muito menos nos fundos partidário e eleitoral, excrescências que, em nome de “financiar a democracia”, fazem o pagador de impostos bancar partidos e candidatos que ele não apoia. Uma festa, hoje com viés conservador.
Em 2022, o PL, partido do ex Jair Bolsonaro, elegeu 99 deputados. A federação PT, PV e PCdoB, 80. A diferença pró-PL fez com que os brasileiros fossem pré-taxados como extremamente conservadores, o que não se observa quando os temas da pauta de costumes são escrutinados em pesquisas de opinião.
Ao contrário do que supunham os defensores do projeto do estupro, Datafolha publicado na última sexta-feira aponta que 66% não o apóiam. Mais: 52% dos evangélicos, corrente que patrocina a criminalização da mulher violentada que recorre ao aborto, defendem que o acesso à interrupção da gravidez seja ampliado para outros casos além dos já previstos pela lei (risco de vida da mulher, estupro e anencefalia do feto).
Mas o que mais chama atenção é a desconexão do tema com a realidade das pessoas: 44% dos entrevistados simplesmente desconheciam o projeto de lei, demonstrando se tratar de uma proposta exclusivamente ideológica, completamente fora do radar dos brasileiros.
Outras pautas de costumes nas quais a direita radical aposta também não têm lá forte adesão popular. Pesquisa da Global Advisor – LGBT+Pride 2023, com 22 mil entrevistas em 30 países, mil delas por aqui, aponta que 51% dos brasileiros são favoráveis ao casamento homoafetivo e 69% apoiam que casais do mesmo sexo possam adotar filhos. No porte de armas por civis, registra-se empate com 49% contra, 48% a favor, segundo a PoderData, em pesquisa realizada em julho de 2022. Só ganham na criminalização da maconha, que, de acordo com pesquisa Datafolha, é apoiada por 67% da população. Ainda assim, também não se trata de tema prioritário, passando longe das principais preocupações das pessoas que, pela ordem, continuam sendo saúde, segurança pública e educação.
Somados à desconexão com os interesses da população, a presença de apenas 14,7% de mulheres e 124 pretos e pardos entre 513 deputados e 81 senadores escancaram que o Congresso não espelha o Brasil. Definitivamente não é a cara do país, mas insiste em esbofetear a nossa cara.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 23/6/2024.
Impressionantemente bom!!!