As urnas foram cruéis com Lula e Bolsonaro. Naufragou a intenção dos dois de fazer das eleições municipais o tira-teima da disputa presidencial de 2022. No campo de Lula, a esquerda mergulhou em profunda crise de identidade, com seu principal partido, o PT, na “zona do rebaixamento”, como caracterizou o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha. E Bolsonaro perdeu o status de voz única da direita, amargando derrotas importantes ao confrontar outras lideranças de uma direita que deixou de ser monocromática.
Assim como não há uma esquerda única – prova disso é a ascensão da liderança jovem de João Campos (PSB), reeleito no primeiro turno em Recife -, também não há uma única direita. Verdade que desde 2018 esquerda e direita se confundiam com suas duas grandes lideranças, em decorrência da polarização calcificada. Mas as eleições municipais revelaram uma realidade multifacetada, com o fortalecimento dos partidos pêndulos, PMDB e PSD, que democraticamente ora se aliam à direita, ora à esquerda. Quando não se aliam aos dois. À esquerda no plano federal e à direita no plano local.
As urnas fazem milagres. A moderação, tão em baixa nos tempos da radicalização extremada, foi redescoberta como uma virtude após o resultado eleitoral. O centro, campo político que parecia ser uma espécie em extinção, ressurge no cenário. Passa a ser cortejado pelos dois espectros políticos. Evidência disso é a declaração de Gleisi Hoffman, presidente do PT, segundo a qual o governo deveria fazer uma inflexão ao centro. É mais pressão sobre Lula.
No campo da direita, Bolsonaro também está sendo tensionado. Não só pela vitória e assunção de outras lideranças da direita – Tarcísio de Freitas, Ratinho Jr. e Ronaldo Caiado – mas também pela cobrança para modular seu discurso. Até o presidente do seu partido, Valdemar Costa Neto, o pressiona. Pragmático, aconselha a Bolsonaro uma inflexão ao centro. Caso contrário será derrotado, ainda que tenha condições legais de voltar a disputar a presidência.
Como Costa Neto diz, “o duro é convencer Bolsonaro e seus radicais” da necessidade de virar o disco. O líder da extrema-direita é, por sua natureza, mercurial e desprovido de raciocínio estratégico sofisticado. Mas, ou muda, ou se estrumbica, como tende a acontecer.
Tanto a direita conservadora e moderada como o centro vão querer distância do radicalismo, na próxima disputa presidencial. Além disso, é ilusão creditar ao bolsonarismo o crescimento exponencial do Partido Liberal nestas eleições municipais. A esmagadora maioria de seus prefeitos eleitos nada tem de radicais. Nem mesmo a maioria de sua bancada no Congresso é majoritariamente de extrema-direita.
Já o Partido dos Trabalhadores e Lula têm um desafio talvez até maior. O de realizar seu aggiornamento para se conectar com a nova realidade. A esquerda sempre se estruturou com base no discurso da igualdade e de soluções coletivas. Suas utopias perderam aderência frente a um mundo em profunda mutação, no qual as relações de trabalho e de produção não são as mesmas da industrialização dos anos 80. A direita acena com a utopia da prosperidade, e a esquerda, que nova utopia apresenta nesse mundo ultramoderno?
O PT e o governo Lula tendem a ser pressionados por duas correntes de pensamento oposto. De um lado, setores da esquerda pregam uma “volta às origens”, com radicalização à esquerda. Já outros propõem uma maior aproximação com o centro. Isto levaria, inevitavelmente, a uma reforma do ministério de Lula, com os partidos aliados assumindo maior protagonismo no governo.
Não é difícil adivinhar para qual lado Lula penderá. O presidente já disse que sempre se deu mal quando foi para a esquerda. O complicador é saber o quanto o PT topa abrir mão de fatias importantes do poder e o quanto o próprio presidente se dispõe a fazer um governo efetivamente de frente ampla, no qual os partidos aliados não sejam apenas sócios menores, como o são atualmente.
Tanto Bolsonaro como Lula tem um problemão para concretizar suas pretensões para 2026. O cansaço com a polarização abriu uma vereda enorme para alternativas de centro. Os dois principais vitoriosos, MDB e PSD, são partidos com essa vocação. A costura política efetivada na disputa paulistana, fator principal para a vitória de Ricardo Nunes, pode ter servido de laboratório de um novo realinhamento político, capaz de reproduzir na próxima disputa presidencial a frente bem sucedida na capital paulista.
Tal possibilidade se tornará mais factível se a inegebilidade de Bolsonaro não for revertida, como parece ser a tendência. A rigor, sua reversão só interessa mesmo ao bolsonarismo puro-sangue e, contra ela, conspira o recado das urnas. O próprio PL ficará dividido entre sua ala “ideológica” e a ala pragmática. Bolsonaro foi útil para alavancar o partido de Costa Neto em 2022, mas há dúvidas se terá o mesmo papel em 2026. Dada a sua personalidade, poderá ser um andor pesado para se carregar.
Quando se alarga o horizonte da próxima sucessão presidencial, é bom manter os olhos em três lideranças: Gilberto Kassab, Baleia Rossi e Tarcísio de Freitas. Os três se entenderam muito bem e foram os grandes condutores da vitória de Ricardo Nunes. Kassab e Baleia tem o estilo dos políticos do velho PSD, de costurar e ciscar para dentro, de aglutinar. Já Tarcísio de Freitas aprendeu rapidamente a arte da política.
A grande lição das urnas foi a demonstração de que, fora de seus casulos, ninguém aguenta mais a polarização Lula-Bolsonaro. Se os dois insistirem na mesma toada, estarão trocando o abraço dos afogados.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 30/10/2024.