“Meu corpo, minha escolha”

De que adianta comemorar o Dia Internacional da Mulher, se neste país a mulher não pode ser dona do próprio corpo?

No Brasil, os únicos casos em que o aborto é permitido por lei são estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. A mulher que preferir interromper a gravidez não tem esse direito – e, se fizer o aborto, pode ser presa e condenada. Decidir o que fazer com seu próprio corpo é crime.

Mesmo naqueles pouquíssimos casos em que o aborto é legal, de acordo com legislação de 1940 (!!!), as dificuldades são imensas, como mostra reportagem de Geovana Oliveira na Folha de S. Paulo deste Dia da Mulher, com o título claro como água da fonte: “Mulheres enfrentam recusa médica e humilhações para acessar aborto legal no Brasil”.

“Os relatos de mulheres que buscaram o procedimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde) mostram que, mesmo em casos permitidos, elas podem ficar à mercê de médicos e juízes”, diz a reportagem. “Elas descrevem situações de humilhação, constrangimento, fanatismo religioso, dificuldade de acesso a informações sobre o aborto legal e a hospitais que fazem a intervenção, além de longas viagens para ter acesso ao procedimento. Para Ana Elisa Bechara, vice-diretora e professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), na prática, o aborto legal sofre muitas restrições. ‘Há poucos lugares que fazem o procedimento e ainda há dúvidas, inclusive por parte dos agentes públicos envolvidos, sobre como os casos devem ser conduzidos’, afirma.

E mesmo esses parcos, diminutos casos em que por lei a mulher tem o direito de aberto – ainda que enfrentando todo tipo de dificuldade – estão sempre ameaçados. Como lembra a advogada Priscila Pamela Santos em artigo na Folha de S. Paulo, aqui há “diversos projetos de lei voltados a reforçar a criminalização de mulheres em decorrência da interrupção voluntária da gravidez. Projetos que vão desde a equiparação do aborto a crime hediondo à obrigatoriedade de escuta dos batimentos do feto.”

Enquanto o aborto é legalizado em 77 países (inclusive os vizinhos Argentina e Uruguai, mais o Chile em que foi descriminalizado), e a França sai na frente e se torna o primeiro país do mundo a garantir o direito ao aborto na Constituição, para evitar retrocessos, o Brasil vive no atraso do atraso, como escreveu no Globo deste Dia da Mulher a jornalista Flávia Oliveira:

“No Brasil, o ambiente é de retrocesso, resultado de um Congresso Nacional, a cada pleito, mais conservador e empenhado em impregnar com moral religiosa os direitos civis. (…) A tão barulhenta quanto numerosa bancada conservadora no Legislativo insiste em reduzir o assunto ao Fla-Flu do contra ou a favor, como fosse esse o debate. Mesmo quem, por princípio, não aprova, às vezes interrompe uma gestação, por razões socioeconômicas, familiares, de saúde, particulares. Está em jogo dar a uma mulher o direito a decidir sobre o próprio corpo, algo que jamais foi negado aos homens. É oferecer políticas públicas de educação sexual, acesso a contraceptivos e, se necessário, a interrupção gestacional segura, que não tire a vida nem adoeça meninas, jovens, adultas.”

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E o que faz o governo “progressista”, “de esquerda”, do lulo-petismo? Demonstra na prática que é mesmo contra os retrocessos, o racionarismo, que luta pelo progresso? Enfrenta com coragem e dignidade a onda conservadora? Demonstra que a interrupção voluntária da gravidez é uma questão de direito fundamental de cada mulher, que é um tema de saúde pública, e não moral, religioso – até porque vivemos numa república laica, que respeita a liberdade religiosa mas também a liberdade individual?

Faz campanha de esclarecimento público sobre a questão, exibindo números, argumentos?

Sim, números. Alguns poucos:

* Entre 2012 e 2022, 483 mulheres brasileiras morreram em hospitais da rede pública em decorrência do aborto clandestino, sem as mínimas condições de higiene, de cuidados médicos;

* Uma em cada sete mulheres brasileiras na faixa dos 40 anos já abortou, a esmagadora maioria por meios clandestinos;

* Entre 2008 e 2015, houve cerca de 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto, sendo cerca de 1.600 por razões médicas e legais.

* De 2006 a 2015, foram encontrados 770 óbitos maternos com causa básica aborto no SIM (Serviços Integrados em Medicina).

Alguns poucos argumentos:

* Enquanto em 77 países – entre eles vários dos mais desenvolvidos e de melhores condições de vida da população – o direito ao aborto é legalizado, apenas 16 proíbem totalmente esse direito. Entre eles estão países pobres, subdesenvolvidos, atrasados, como Egito, Iraque, Filipinas, Laos, Senegal, Nicarágua, El Salvador, Honduras, Haiti, República Dominicana. O Brasil, está no grupo de 30 países que permitem o procedimento em alguns pouquíssimos casos; a companhia de Nigéria, Venezuela, Irã, Afeganistão e Mianmar não é propriamente de nos deixar com orgulho.

* Descriminalizar ou legalizar não significa que uma mulher tem que fazer aborto. Faz quem precisa – quem não está preparada ou não tem condições de ser mãe.

Como escreveu em sua coluna no Globo neste Dia Internacional da Mulher a jornalista Ruth Aquino:

“Nenhuma de nós é ‘a favor do aborto’. Mas sim do ‘direito de abortar’ até um período seguro, determinado por médicos. (…) É injusto, ineficaz e criminoso submeter mulheres a risco de morte e prisão por abortar. Sempre que escrevo sobre esse assunto, encerro da mesma maneira. Eu fiz aborto. Não me orgulho, nem me arrependo.”

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Pois o que faz o governo “progressista”, “de esquerda”, do lulo-petismo? Defende o direito fundamental da mulher de decidir o que faz com seu próprio corpo?

Não. Absolutamente.

Esconde-se. Finge que não é com ele. Morre de medo de perder o voto dos religiosos. Recua até mesmo quando o Ministério da Saúde emite nota técnica lembrando o que diz o Código Penal de 1940.

Para quem não lembra o caso:

O Código Penal não estabelece limite de tempo para a interrupção da gravidez naqueles casos previstos em lei. Aqueles três lá: estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. O governo anterior, o do Capitão da Morte, o golpista, o negacionista, o anticiência, impôs o limite de 21 semanas e seis dias. Algo que lei alguma determinava. Pois bem. Então, no dia 28 de fevereiro, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica revogando a decisão do governo Bolsonaro, restabelecendo o que sempre houve, que não há limite temporal para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei.

A grita do bolsonarismo fez com que a ministra da Saúde, Nísia Trindade, um dos poucos quadros competentes na atual Esplanada dos Ministérios, fosse levada a suspender a nota técnica, alegando que ela não havia passado por consultoria jurídica e nem por todas as esferas necessárias da pasta.

O governo “progressista”, “de esquerda” não tem coragem sequer de reiterar que vale o que está escrito desde 1940!

Pior ainda: como lembra Ruth Aquino em seu artigo, na mesma semana em que a França deu aquele importante passo para garantir direitos já adquiridos pelas mulheres, aqui no Brasil “os amiguinhos do primeiro escalão do governo Lula sugeriram ao presidente que, em discursos, passe a condenar a descriminalização do aborto. Pra ficar bem na fita com religiosos.”

Não é para que ele não defenda a legalização. É muito pior: é para que ele condene a descriminalização!

É. Não há motivo algum para comemorar o Dia Internacional da Mulher em um país em que a mulher é impedida de ser dona de seu próprio corpo.

Abaixo vão as íntegras dos artigos citados.

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Quisera o Brasil estivesse no caminho da França

Por Priscila Pamela Santos, Folha de S. Paulo, 8/3/2023

Em 1791, a francesa Olympe de Gouges publicou, em oposição à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã: “A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas a não ser na utilidade comum”. Por defender os direitos das mulheres, liberdade e igualdade de gênero, em meio à Revolução Francesa, foi morta pelo tribunal jacobino.

Suas idéias, todavia, inspiraram muitas que vieram depois dela, como a escritora inglesa Mary Wollstonecraft, que escreveu “Reivindicação dos Direitos da Mulher” (1792), considerado o texto fundador do feminismo como movimento organizado. E, na mesma linha, já no século 20, a filósofa francesa Simone de Beauvoir, autora de O Segundo Sexo (1949), obra essencial para se entender a construção social da desigualdade e a violência de gênero.

Em 1974, a ministra da Saúde da França, Simone Veil, discursou na Assembleia Nacional durante a discussão para a legalização do aborto. A ministra, primeira mulher a presidir o Parlamento Europeu, defendeu a descriminalização do aborto como uma questão de justiça social e saúde pública e, na ocasião, o aborto legal foi aprovado.

Desde então, o Parlamento francês promoveu nove reformas, todas para ampliar o exercício do direito ao aborto. Porém, após decisão da Suprema Corte norte-americana, no caso Roe vs. Wade, que revogou o aborto legal assegurado desde 1973, acendeu-se na França o alerta para evitar alterações legislativas retrógradas semelhantes ao acontecido nos EUA, e a constitucionalização foi o caminho adotado.

Na última segunda-feira (4), o Congresso francês reconheceu o direito constitucional ao aborto, em mais uma vitória da luta histórica dos movimentos feministas do país. Ao cravar no texto constitucional a proteção da liberdade da mulher por meio do direito ao aborto, o Parlamento francês impede que sua mitigação se dê por votação simples, sendo necessária emenda constitucional para qualquer nova alteração, cujo processo de aprovação é mais complexo —ainda mais na França, em que a Constituição sofreu apenas 25 emendas.

Quisera o Brasil estivesse no mesmo caminho! Aqui, pelo contrário, há diversos projetos de lei voltados a reforçar a criminalização de mulheres em decorrência da interrupção voluntária da gravidez. Projetos que vão desde a equiparação do aborto a crime hediondo à obrigatoriedade de escuta dos batimentos do feto. Nada semelhante se nota em relação aos homens que deixam de reconhecer seus filhos, ou que, quando o fazem, deixam de prestar o auxílio necessário ao seu desenvolvimento.

Entre 2012 e 2022, 483 mulheres brasileiras morreram em hospitais da rede pública em decorrência do aborto clandestino, a maioria negra, menor de 14 anos e moradora de periferias —ou seja, meninas e mulheres que vivem em situação de total vulnerabilidade, o que denota que a prática está voltada à precarização e à feminização da pobreza e não a um problema criminal.

De todo modo, a descriminalização do aborto está sendo discutida na ADPF 442, no Supremo Tribunal Federal, cuja função contramajoritária é a defesa dos vulneráveis. Espera-se de nossa Suprema Corte uma decisão pautada na Constituição, que já traz os preceitos nos quais a legalidade da interrupção da gravidez se sustenta, como o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o princípio da igualdade (art. 5º, I) e da não discriminação (art. 3º IV), a vedação à tortura e a qualquer tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), além da proteção do direito à saúde (arts. 6º e 196) e ao planejamento familiar (art. 226).

As premissas constitucionais para a descriminalização do aborto no Brasil estão postas e com base nelas é que o STF precisa analisar a ADPF 442, já que, infelizmente, parece-nos que o ódio à liberdade das mulheres sob o falacioso argumento da fé em um Deus perverso é o que tem balizado o direito e a política no Congresso Nacional —portanto, não há grandes expectativas de mudanças legislativas virem de lá.

(Priscila Pamela Santos é advogada criminal e mestranda em direitos humanos pela USP, é vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e integrante do Grupo Prerrogativas.)

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O atraso do atraso

Por Flávia Oliveira, O Globo, 8/3/2024

A semana apenas começava, quando a boa-nova vinda do outro lado do Atlântico se espalhou. A França, em votação maiúscula no Parlamento (780 votos em 852), aprovara incluir no texto constitucional o direito de mulheres interromperem a gravidez. Havia meio século que as francesas tinham autorização para abortar via lei específica. A inscrição na Carta Magna, inédita no planeta, sedimenta a garantia. Tão logo seja promulgada, provavelmente neste Dia Internacional da Mulher, não mais haverá risco de flutuar ao sabor de governos, ventos ideológicos, arroubos morais, convicções religiosas. É muito mais difícil — ao menos lá — mexer na Constituição, comentou uma emocionada Comba Marques Porto, feminista histórica, com papel importante na formatação da Carta de 1988 como membro do Conselho Nacional da Mulher.

 

Não apenas nas ruas de Paris, mas mundo afora, ativistas, organizações feministas, profissionais de saúde, estudantes, políticas, gente comum celebraram a mudança aprovada em Versalhes. A decisão legislativa, abraçada pelo presidente Emmanuel Macron em publicação imediata em rede social, foi vista como reafirmação do Estado laico. E içada contraofensiva a um ambiente global crescentemente conservador, que avança — ou tenta — sobre direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, a começar pelos Estados Unidos, onde a Suprema Corte reviu, em 2022, decisão que garantia o direito ao aborto havia 49 anos.

 

No Brasil, o ambiente é igualmente de retrocesso, resultado de um Congresso Nacional, a cada pleito, mais conservador e empenhado em impregnar com moral religiosa os direitos civis. A legislação que autoriza o aborto em casos de estupro e risco de vida para a gestante — mais tarde, o Supremo Tribunal Federal adicionou a interrupção em caso de feto anencéfalo — é de 1940. Fora isso, uma mulher que aborta está sujeita pelo Código Penal a prisão por até três anos.

 

Em 2017, o PSOL foi à Corte arguir a inconstitucionalidade da criminalização, sob a alegação de comprometer a dignidade da pessoa humana, a cidadania das mulheres, o direito à saúde e à integridade física e psicológica. Além disso, é medida que, comprovadamente, afeta desproporcionalmente mulheres pretas, pobres, indígenas, de baixa escolaridade, moradoras de áreas remotas. Por ano, quatro centenas de brasileiras são denunciadas por interrupção de gestação. Estão predominantemente na base da pirâmide. São também elas que saem mutiladas ou mortas de práticas sem segurança sanitária, que custam ao SUS e, por óbvio, à sociedade.

 

No ano passado, a então presidente do STF, ministra Rosa Weber, pôs a ação em julgamento. Foi relatora de um voto histórico de 129 páginas, em que se debruçou sobre cada dimensão de um assunto complexo que, de forma recorrente, vem sendo tratado — predominantemente por homens — com a profundidade de um pires e a cegueira do fanatismo religioso, num Estado que se supõe laico. Luís Roberto Barroso, que sucedeu a Rosa na presidência do STF, interrompeu o julgamento virtual. Não há previsão para o assunto voltar ao plenário. Na sabatina no Senado que o aprovou para o Supremo, Flávio Dino, recém-empossado, manifestou opinião contrária ao voto da antecessora. A Corte tem hoje somente uma mulher, Cármen Lúcia, entre 11 integrantes.

 

A tão barulhenta quanto numerosa bancada conservadora no Legislativo insiste em reduzir o assunto ao Fla-Flu do contra ou a favor, como fosse esse o debate. Mesmo quem, por princípio, não aprova, às vezes interrompe uma gestação, por razões socioeconômicas, familiares, de saúde, particulares. Está em jogo dar a uma mulher o direito a decidir sobre o próprio corpo, algo que jamais foi negado aos homens. É oferecer políticas públicas de educação sexual, acesso a contraceptivos e, se necessário, a interrupção gestacional segura, que não tire a vida nem adoeça meninas, jovens, adultas. Aos 40 anos, uma em cada sete mulheres brasileiras já abortou, a esmagadora maioria por meios clandestinos. Com ou sem permissão legal.

 

Ao STF caberá decidir — sabe-se lá quando — se uma mulher que interrompe a gestação deve ou não ir para a cadeia. No mundo político, há convicção de que, se o Congresso for provocado, virão proibição total e criminalização absoluta. As mesmas Excelências, em defesa da vida, condenam o aborto; em nome da segurança pública, regozijam-se com o encarceramento e a execução sumária de jovens, sobretudo negros, criminalizados nas periferias país afora.

 

Na véspera do 8 de Março, a Rede de Observatórios de Segurança apresentou o relatório “Elas vivem: liberdade de ser e viver” sobre violência de gênero. No ano passado, em oito estados (BA, CE, MA, PA, PE, PI, RJ e SP) 3.181 brasileiras sofreram algum tipo de violação, de agressão verbal a tortura, de cárcere privado a estupro, de agressão física a assassinato. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também ontem, informou que, desde a entrada em vigor da Lei 13.104/2014, houve 10.655 registros de feminicídio. Em 2023, 1.463 perderam a vida só por serem mulheres, o maior número da série histórica.

 

Enquanto francesas celebram, brasileiras padecem. Por todos os lados.

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A favor do aborto legal por escolha

Por Ruth de Aquino, O Globo, 8/3/2024

 

Mais um 8 de março. Mais um motivo de inveja (minha) da França, que se tornou esta semana o primeiro país no mundo a incluir na Constituição o direito ao aborto. Por escolha de consciência. A lei fica, assim, protegida de reviravoltas como as ocorridas nos Estados Unidos.

 

O Artigo 34 consagra a “liberdade garantida de recorrer ao aborto”. Irreversível. A não ser que se rasgue a Constituição. Ou que se consiga uma votação inversa. A maioria exigida para mudar é de três quintos do Parlamento. O voto, histórico e simbólico, no Palácio de Versalhes, foi arrasador: 780 a favor, 72 contra. Quase unânime.

Na Torre Eiffel, cintilou uma inscrição: “mon corps, mon choix”. Acima do partidarismo e de convicções pessoais, a França garantiu o direito da mulher a seu corpo. A quem acusa Emmanuel Macron de oportunismo num momento delicado, tenho outra opinião. Melhor ganhar popularidade com uma lei do que com uma guerra. Como muitos por aí.

 

Talvez a história fosse outra na França se uma ministra da Saúde, Simone Veil, não tivesse tido a coragem de enfrentar há 50 anos um Parlamento hostil, praticamente só de homens, com apenas 2% de mulheres eleitas. Era o ano de 1974. Veil, sobrevivente do Holocausto, defendeu com discurso impecável e sereno a legalização do aborto.

 

Foram 25 horas de debates intensos. Ao final, a lei foi aprovada para que nenhuma mulher fosse presa ou morta por precisar ou desejar interromper uma gravidez na França, primeiramente até 10 semanas de gestação. E nem por isso o número de abortos aumentou entre francesas. Diminuiu. Eram 300 mil abortos clandestinos por ano.

 

No Brasil, enquanto aborto for considerado uma questão moral ou, pior ainda, uma questão eleitoral, e não de saúde pública, continuaremos a matar, algemar e mutilar milhares de brasileiras. As ricas fazem abortos seguros em clínicas particulares. A maioria absoluta, mulheres pobres, faz abortos clandestinos. É hipocrisia e egoísmo fechar os olhos para essa realidade.

 

O Brasil só admite aborto em casos de estupro e risco de morte para a mulher, além de casos de fetos anencéfalos. Fora isso, é crime. E mesmo assim, juízes e hospitais conseguem dificultar para meninas a interrupção legal da gravidez.

 

Existe ainda a mania masculina de ignorar a autonomia feminina nessas decisões. Homens não podem forçar uma mulher a abortar. E nem a ter filhos. Ou a levar uma gravidez até o fim.

 

Nenhuma de nós é “a favor do aborto”. Mas sim do “direito de abortar” até um período seguro, determinado por médicos. A escolha dificilmente é desprovida de conflito e dor. É infindável o debate sobre o início da vida. Mas a religião não ajuda a jogar luz sobre a discussão. Só a castigar, punir, condenar.

 

Na mesma semana em que a França deu mais um passo para garantir direitos já adquiridos pelas mulheres, do outro lado do Oceano Atlântico, mais precisamente no Brasil, os amiguinhos do primeiro escalão do governo Lula sugeriram ao presidente que, em discursos, passe a condenar a descriminalização do aborto. Pra ficar bem na fita com religiosos.

 

Uma vez assisti a um clipe de 30 segundos de uma organização pela saúde de mulheres. Na rua em São Paulo, pedestres são abordados. Você é contra ou a favor do aborto? Contra, dizem todos. Você conhece alguém que já fez aborto? Sim. Você acha que essa pessoa deveria ser presa? Todos emudecem.

 

É injusto, ineficaz e criminoso submeter mulheres a risco de morte e prisão por abortar. Sempre que escrevo sobre esse assunto, encerro da mesma maneira.

 

Eu fiz aborto. Não me orgulho, nem me arrependo.

8/3/2024

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