Matem o mensageiro

Atribui-se a Dario III, rei da Pérsia, ter sido o governante a mandar matar o mensageiro por ter ficado contrariado com a péssima notícia que ele trazia. No campo de batalha, as tropas do rei persa tinham sido fragorosamente derrotadas pelo exército de Alexandre da Macedônia, o Grande.

O episódio entrou para a história como emblemático da reação de certas pessoas diante de portadores de más notícias. Em vez de encarar a realidade como ela é, muitas vezes contrária aos seus desejos, punem o mensageiro.

O ministro do Supremo Federal Dias Toffoli parece ter se inspirado em Dario III ao autorizar uma investigação para apurar se a Transparência Internacional se apropriou de recursos de multas aplicadas à empresa J&F, no seu acordo de leniência de 2017.

Coincidentemente, uma semana antes a Transparência Internacional (TI) foi a mensageira da péssima notícia de que o Brasil caiu em um ranking delicado.

O Índice de Percepção da Corrupção é o principal indicador de corrupção do mundo. Produzido pela TI desde 1995, ele avalia 180 países e territórios atribuindo notas em uma escala entre 0 e 100. Quanto maior a nota, maior é a percepção de integridade do país. O IPC de 2023 destacou que o enfraquecimento dos sistemas de justiça reduz a capacidade estatal de enfrentar e prevenir corrupção, além de aumentar os riscos de abuso de poder e de impunidade. A Transparência divulgou que o Brasil fez míseros 36 pontos e perdeu dez posições no ranking, tendo sido classificado em 104º lugar.

O relatório da TI cita Toffoli nove vezes por causa de decisões monocráticas e heterodoxas. Entre elas a da suspensão da multa de 10 bilhões de reais de J&F, assim como a de 3,5 bilhões da antiga Odebrecht e atual Novonor.

Também por absoluta coincidência, a esposa do ministro é advogada da empresa de Joesley Batista, em outro processo. Para espanto geral isto não é ilegal, pois decisão do Supremo Tribunal Federal não viu conflito de interesses entre juízes ao julgar casos de empresas nas quais seus parentes atuem, em outras causas. Não é ilegal, mas difícil convencer o brasileiro de que essa é uma prática republicana e moralmente ilibada.

As decisões monocráticas do ministro terão efeito cascata nos casos de empresas que são réus confessos do escândalo de corrupção e que assinaram acordos de leniência.

Não será de se estranhar se, em futuro próximo, saírem vitoriosas em pedidos de devolução ou de indenização por danos morais do que já pagaram.

Dias Toffoli, em sua decisão, juntou sua voz aos que, como o presidente Lula, veem uma conspiração internacional a serviço de objetivos escusos. Em seu parecer, o ministro classificou a Transparência Internacional como uma “entidade alienígena” com sede em Berlim.

Há um paradoxo na decisão do ministro. Determina à Procuradoria Geral da República investigar a entidade, apesar de em 2020, a PGR já ter se pronunciado, inocentando a ONG, e concluindo que não havia nada de errado na consultoria prestada pela TI sobre a destinação de recursos da Lava-Jato para projetos e entidades de combate à corrupção. Em ofício do mesmo ano, a subprocuradora Samantha Chantal atestou que a TI prestou somente auxílio no planejamento e na definição da estratégia, “seguindo as melhores práticas internacionais”. Segundo ela, no memorando de acordo cooperativo havia a previsão explícita de proibição de “qualquer transferência de recursos para que a instituição não governamental realizasse o apoio técnico cooperativo”.

O episódio poderia entrar para o folclore político, mas é algo bem mais grave. É parte da estratégia revisionista que pretende reescrever a história por meio da narrativa de que o Petrolão não passou de uma conspirata de procuradores e juízes mancomunado com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O próprio presidente Lula verbalizou sucessivas vezes essa versão mirabolante.

Quando vieram à luz do dia os escândalos do Petrolão e os culpados foram punidos, o patrimonialismo sofreu duro golpe, criando a impressão de que o Brasil deixaria de ser o país da impunidade. Mas as forças incrustradas no aparato estatal reagiram e conseguiram desativar o combate à corrupção, aproveitando-se de erros grosseiros ou práticas ilegais de juízes e procuradores da Lava-Jato. O poder judiciário, inclusive sua instância máxima, deu sua parcela de contribuição negativa com decisões polêmicas. Os erros da Lava-Jato vitaminaram o negacionismo em curso, como se a corrupção não tivesse existido, em larga escala, nos anos dourados dos governos petistas. Esqueceram-se dos réus confessos e de todo o dinheiro que foi devolvido aos cofres públicos.

Parte da esquerda sente-se incomodada e não sabe como enfrentar a questão da corrupção, talvez por causa de seu telhado de vidro. Prefere atribuir o anseio da sociedade pelo fim da impunidade como um moralismo irrelevante, udenista. Não entende o combate à corrupção como uma bandeira democrática e finda por entrega-la, de bandeja, nas mãos da direita.

Sua artilharia volta-se agora contra a Transparência Internacional. Em vez de entender o relatório da organização como um sinal de alerta e se dedicar ao fortalecimento dos mecanismos de combate à corrupção, empenhou-se em desgastar a imagem de uma ONG de credibilidade internacional.

A decisão do ministro Toffoli atendeu a uma petição de notícia-crime de autoria do deputado Rui Falcão, do Partido dos Trabalhadores.

Assim que o relatório de 2023 sobre a percepção da corrupção tornou-se público membros importantes do governo, como o então ministro da Justiça Flávio Dino, vieram a público para desclassificar a Transparência Internacional.

Compreende-se essa reação. Falar de corrupção para o PT causa o mesmo incômodo de quem fala de corda em casa de enforcado.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 14/2/2024.

 

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