Na terça-feira, dia em que Kamala Harris enfrenta Donald Trump no debate promovido pela ABC News, faltarão 55 dias para a eleição presidencial dos Estados Unidos, cujo resultado impactará o resto do mundo – para o bem ou para o mal.
No Brasil, uma eventual vitória de Trump fortalece o bolsonarismo e a direita extrema. Mas o reverso da moeda não é propriamente o avesso: o antiamericanismo de Lula o distancia do Partido Democrata do presidente Joe Biden, um dos primeiros a parabenizá-lo pela vitória nas eleições de 2022 e a repudiar o movimento golpista do ex.
De lá para cá a relação entre os dois esfriou. Os acenos de Lula a Vladimir Putin, ao considerar como iguais invasor e invadido na guerra da Rússia contra a Ucrânia, a negativa de tratar o Hamas como grupo terrorista e, mais recentemente, a proteção ao autodeclarado presidente da Venezuela Nicolás Maduro, que jogou no lixo o acordo de Barbados por eleições livres, do qual Estados Unidos e Brasil participaram, são apenas algumas das dissonâncias entre eles.
Ao contrário de seu costume de dizer que não mete a colher em política interna de outros países e mexer o caldo sempre que lhe interessa – torceu abertamente por Sérgio Massa contra Javier Milei, na Argentina, e por Cláudia Sheinbaum, no México, herdeira do companheiro López Obrador -, Lula não deu um pio sobre as eleições americanas. Melhor assim. Mas deverá ser instado a fazê-lo no final deste mês, quando estará em Nova York para a 78ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. A ver.
Se por aqui debates não costumam ser definitivos, nos Estados Unidos eles são tidos como vira-jogo. Têm efeito sobre indecisos, dão munição às campanhas e até mesmo, como ocorreu com Biden em junho, abatem uma candidatura.
Desde a desistência de Biden e a assunção de Kamala como candidata, o ânimo dos democratas mudou: a derrota quase certa virou possibilidade real de vitória.
Os 90 minutos de confronto, com regras à brasileira de tempos limitados para perguntas, respostas e réplicas, e sem questões de candidato para candidato, serão uma prova de fogo para a atual vice-presidente. Ela ganhou muitos pontos em pouco tempo; conseguiu recolocar os democratas no campeonato em que já estavam desclassificados e, portanto, não pode falhar. Mas essa é apenas uma das pressões em cima de Kamala para esta terça. Mais do que lutar contra o mentiroso contumaz Trump, ela terá de defender o governo Biden, bem avaliado por analistas mas absolutamente impopular. E o adversário sabe disso.
Já Trump nada tem a perder. Há tempos o republicano decidiu que denunciará as eleições como fraudulentas caso não tenha êxito nas urnas. Na verdade, já começa a fazê-lo com a mesma ladainha de fraude na validação de votos, tática semelhante à que usou para contestar a vitória de Biden.
Se Kamala tirou Trump da zona de conforto depois da renúncia de Biden, opositor ideal que o republicano considerava fácil de vencer, o magnata agora tenta reagir. Gasta milhões de dólares em comerciais contra a candidata democrata, taxando-a de comunista e de ter “sangue nas mãos” por apoiar a entrada de imigrantes que cometem crimes contra americanos, em uma escalada ainda mais agressiva do que a utilizada, com sucesso, contra Hillary Clinton.
A campanha de Kamala vai na mão oposta, com propaganda voltada ao perfil da candidata e ao seu programa de governo endereçado à classe média, aos pequenos e médios empreendedores, à defesa do direito ao aborto. Até agora, parece ter tido sucesso: em agosto, ela arrecadou o triplo de Trump e bateu o recorde que até então era de Barack Obama em contribuições de pequena monta, abaixo de US$ 100. Está vencendo por pouco – entre 3 e 4 pontos dependendo da pesquisa – nas consultas nacionais e em quatro dos oito estados tidos como pêndulos, e aparece empatada com Trump em outros quatro.
Os valores pregados por Trump e Kamala não permitem dúvidas sobre de que lado ficar. Bolsonaro e seus filhotes há muito já optaram pelo republicano, a quem sempre tentaram e continuam tentando copiar. Lula, como presidente do Brasil, faz bem em não revelar preferência, mesmo que o tenha feito em favor de candidatos queridos em outros países.
Será uma noite de terça-feira para lá de tensa para quem vê com aflição os golpes na democracia mundo afora, a urgência climática, a crescente concentração de riqueza nas mãos de meia dúzia de bilionários a despeito dos milhões de famintos. Esses torcem com todo vigor para que Kamala vença – o debate e a eleição. Isso talvez não faça o planeta melhor, mas certamente impedirá que ele piore ainda mais.
* O debate acontecerá no National Constitution Center (Filadélfia), às 22h no horário de Brasília. Será moderado pelos apresentadores David Muir, do World News Tonight, e Linsey Davis, da ABC News Live’s Prime.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 8/9/2024.